Ataque ao Porta dos Fundos: nossos terroristas são cordiais (ou covardes?)
Diferentemente dos terroristas que atacaram o jornal Charlie Hebdo em janeiro de 2015 por causa de uma charge de Maomé, nossos terroristas são cordiais: jogam coquetéis molotov no alvo de sua intolerância na calada da noite, às 4h30 da manhã para, supostamente, não machucar ninguém. Ou seriam só covardes, que evitam o confronto direto e, ao contrário dos muçulmanos do episódio Hebdo, não querem nem saber de reivindicar a autoria do crime? Fico com a segunda alternativa.
Feito na véspera de Natal, o ataque à sede da produtora Porta dos Fundos coincide com o maior protesto que o grupo de humor já sofreu por questões religiosas, em razão do especial de Natal deste ano na Netflix, lançado no início do mês. No episódio, Jesus (Gregório Duvivier) é informado que é o filho de Deus (Antonio Tabet) na festa surpresa de seu 30º aniversário. Na ocasião, ele está retornando de uma temporada de 40 dias no deserto e traz um amigo, Orlando (Fábio Porchat), rapaz efeminado que a todo momento insinua ser namorado de Cristo.
É um Jesus completamente do bem, diferentemente da leitura que o personagem mereceu no especial do ano passado, “Se Beber, não Ceie”, vencedor do Emmy Internacional de comédia. Em 2018, Jesus, então vivido por Porchat, é uma figura maléfica e oportunista. Judas (Duvivier) é uma vítima desse líder do mal, que se valia da chance de fazer milagres e se farta de bebida, mulheres e outras droguitas na dita última ceia.
O especial do ano passado, no entanto, protagonizado por um Jesus hétero e pegador, não despertou nem sobra de qualquer ofensa para os cristãos que agora militam por um boicote à assinatura da Netflix, mesmo sob o ônus de perderem as novelas bíblicas também oferecidas pela plataforma.
Com frequência, no Rio de Janeiro, terreiros de umbanda e candomblé são alvos de ataques de intolerância religiosa. Em Salvador, as cozinheiras de acarajé devem se vestir como baianas, em trajes que remetem ao candomblé, como pedem as normas de patrimônio cultural da cidade, mas como várias evangélicas têm sido aconselhadas a evitar o figurino referente à religião afro, criou-se o tal “bolinho de Jesus“.
Tenham dó. O mais bacana deste país é o sincretismo religioso. Voltamos aos tempos do Zé do Burro (“O Pagador de Promessas”), agora com os evangélicos assumindo as vilanias que pareciam exclusividade da igreja católica? Sempre nos orgulhamos da convivência pacífica entre judeus e palestinos por aqui. E é justamente neste contexto que cresce o estímulo à intolerância de fontes oficiais, o que está acontecendo? A que Deus servem essas pessoas? Nada pode ser mais anticristão do que a intolerância.
No caso do Porta dos Fundos, no entanto, a questão vai muito além disso porque estamos falando também de um ataque feroz à liberdade de expressão, já que tratamos aqui da criação e representação de um enredo fictício. Nenhum deles foi ao templo ou à igreja impedir que seus fiéis edulcorassem a imagem divina que lhes é conveniente.
Era para ser só uma piada, e piada que não incomoda e não faz pensar tampouco tem efeito transformador. O humor é capaz de alertar sobre situações que o noticiário, obrigado a ser isentão, nem sempre contempla na medida necessária para chamar a atenção do povo diante do circo montado. Quem se sentir ofendido, magoado ou simplesmente não quiser rir, que mude de canal, que vire a página, que seja feliz no seu conformismo, mas não se pode obrigar que outros vivam nesse confinamento.
A transformação está no ato de se permitir questionar mitos, ideias,conceitos e de pensar sobre toda história com a dúvida necessária à existência humana. Quem tenta calar o outro pode ser tudo, menos cristão, e já peço perdão por causar esse choque em quem não entendeu nada do que leu ou do que viu.
Em tempo: Feliz Natal, com saúde, paz, amor e mais humor, por favor.
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