Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Fernando Meirelles celebra diversidade na tela: ‘descobriram que isso é mercado’

O cineasta Fernando Meirelles comanda masterclass aberta e online, em iniciativa da Sky / Reprodução Site O2 Filmes

Em conversa remota com um grupo de jornalistas da América Latina, em que fui a única brasileira participante, o cineasta Fernando Meirelles falou sobre novos projetos, o cenário do audiovisual na região atualmente, favorecido pela demanda de plataformas sob demanda, lembrou que estudou arquitetura e nunca teve formação formal em cinema, lamentou o desmonte da Ancine no Brasil e, sobretudo, saudou a nova política de diversidade alimentada pela indústria do audiovisual, da publicidade à produção de conteúdo, como efeito de puro interesse do setor privado.

O encontro foi promovido pela DirecTV Latin America (Sky no Brasil), por ocasião de uma masterclass gratuita e online que o cineasta conduzirá nesta quinta-feira (22), às 18h, por meio do site https://faciuni.com/br. A oportunidade servirá para anunciar o vencedor do Faciuni Bolsas, curso cultural desenvolvido pela operadora, em parceria com a Sundance Collab, a USC School of Cinematic Arts, a Warner Bros e a Creative Artists Agency (CAA).

O estudante selecionado entre 113 curta-metragens inscritos ganhará uma bolsa integral para participar de um curso da Warner Bros na USC School of Cinematic Arts, escola de cinema de prestígio mundial, e um prêmio de R$ 10 mil para investir em equipamentos ou projetos audiovisuais. A instituição de ensino do ganhador também leva um prêmio no mesmo valor.

Meirelles leva ao seu microfone o tema “Novas Reflexões na Nova Realidade”, sob mediação da precisa  Simone Kliass. Esta é a 5ª edição no Brasil do concurso, que já ocorre também na Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Peru, Porto Rico e Uruguai e entregou até aqui 19 bolsas de estudos.

Abaixo, reproduzo os principais pontos da nossa conversa:

DIVERSIDADE VEM DE INTERESSE COMERCIAL

“O setor privado está muito ativo nisso. A Netflix, por exemplo, a gente tem projetos com eles, e eles nos obrigam: ‘vocês precisam ter roteirista negro pra contar essa história’, ‘tem que ter uma mulher negra’. A pressão dos players para inclusão e montar equipe é apólice: ‘queremos diretora negra pra esse projeto’, ‘isso não faz sentido se não tiver um roteirista negro’, eles estão puxando mais.

Em ‘Irmandade’ temos. ‘O Pico da Neblina’ [HBO], por exemplo, na primeira temporada, não tinha roteirista, agora entrou a Vivi [Viviane Pistache], o fotógrafo é negro, tem um diretor, que é o André Novais, da Filmes de Plástico, é uma produtora bem bacana de Belo Horizonte, de quatro diretores negros. Então, o André vai dirigir alguns episódios, estamos abrindo, não só porque a produtora decidiu fazer isso em publicidade e em tudo, mas os canais estão exigindo.

Na nossa área do audiovisual, eu vejo isso muito claramente, pra onde você olha, os clientes parece que finalmente acordaram. As produtoras, evidentemente, estão sempre abertas à diversidade, mas agora vem no briefing: se tem três projetos de filmes, dois têm que ser com atores negros. Não é um gesto de ser bonzinho, nada disso: os caras descobriram que isso é um mercado. Se você ignorar 50% do mercado, você está sendo estúpido. [No passado] Já tive até briga por causa disso [resistência de agências em inserir negros em comerciais publicitários]”.

ANCINE TRAVADA

“Ela só não foi extinta oficialmente, né? Nós, na [produtora] O2 fomos bem sagazes. A gente percebeu que isso estava vindo e montou toda a produtora para trabalhar sem dinheiro público. Na O2, a gente está envolvido em 11 séries e dois longas atualmente, com tudo muito ativo, e só parado agora que não pode filmar. Mas só um projeto desses tem ainda dinheiro público, que é o Marighella, que está pronto e não conseguiu ser lançado.

Ou seja, nós somos Ancine Free, mas nesse aspecto, o Bolsonaro conseguiu enterrar um projeto, conseguiu com muito sucesso. Todo mundo que fazia filme dependendo de apoio do estado está parado.

Tem dinheiro preso e não vai ser liberado, ele conseguiu interromper uma história de sucesso, o maior sucesso do Brasil acho que é a indústria do cinema, né? A gente fazia cinco, seis filmes em 2000. Estamos fazendo 150 filmes, séries, então, nem se fala. A gente partiu de 15, 20 horas de produção pra centenas de milhares.

Graças a Deus, nesse momento em que aconteceu isso, as plataformas começaram a entrar no Brasil fortemente. Este ano passado foi muito bom, porque antes a gente estava aqui só com a Amazon, a Netflix e Globoplay. Agora entrou a Hulu, a Disney, a Starz. Então, agora estamos em um mercado com muita demanda, bom para a América Latina.

DESATRELANDO DE HOLLYWOOD

“Festivais universitários são uma oportunidade grande para a América Latina.Brasil e Argentina têm mais facilidade, mas para países menores, como Bolívia, Peru, são muito importante porque a indústria é menor. Claro que para o Brasil também é interessante.

Está acontecendo uma troca no mundo do cinema muito grande porque a indústria era muito centrada nos estúdios americanos. E agora, com as plataformas de streaming, estão trabalhando com todos os países, temos dinheiro para produzir, nunca vi um mercado tão propício à criação.

Quando se trabalha com estúdio americano, tem que ser uma coisa muito genérica. Com as plataformas, é possível fazer filmes mais autorais, penso que é um momento muito propício para estudantes e para o cinema em geral.

Eu gosto mais de ver um filme em uma grande tela, mas há uma grande vantagem de ser em plataforma de streaming porque a audiência na TV é muito maior. No cinema, 20 milhões assistem a um filme, na Netflix são 200 milhões, é um mercado muito maior e uma necessidade de produção muito maior.

Um filme que pode parecer de nicho para o cinema, pode ser muito grande para plataforma, como ‘Dois Papas’: se não houvesse a plataforma, seria um filme muito pequeno, mas como é para plataforma, pode ser uma produção grande, com dinheiro.

Como espectador, eu gosto mais de ir ao cinema, mas como produtor, para ter mais ideias, me encantam as plataformas. Eu tenho assistido a filmes todas as noites de lugares diferentes, nunca vi tantos filmes na minha vida como durante a pandemia, graças às plataformas de streaming.

SEM MÉTODO NO SET

“Não há formatos, há diretores muito sensíveis com atores, outros que já chegam ao set com tudo desenhado. Ser um diretor é saber qual é sua força. Pra mim, eu sou um pouco diretor de jazz, tenho uma facilidade de ter ideias, eu me permito ir ao set sem muita preparação. Vou ao set, sei o que tenho que fazer aquele dia, mas me permito improvisar, mudar planos, eu sei que as ideias vêm pra mim, eu me apoio nessa facilidade. O exercício cotidiano de fazer muitos filmes dá essa noção, há muitas formas de fazer, não há o certo e o errado.

Comecei minha carreira por acidente, estudava arquitetura, fazia filmes de videoarte. Foram aparecendo trabalhos, e quando me dei conta de que isso podia ser uma profissão, fui a uma livraria para ver se podia encontrar livros e encontrei um livro da Cine Movies, chamado ‘Making Movies’. O livro descreve o processo de fazer filmes do começo até o fim, li o livro com o interesse de quem queria aprender e foi o único livro de cinema que eu li de ponta a ponta.

Depois, aprendi fazendo, mas eu não tenho formação. Entendi e aprendi com o tempo, praticando com amigos e companheiros, uma formação muito informal. Tive um professor do  Uruguai, Cesar Charlone [indicado ao Oscar de Fotografia por ‘Cidade de Deus’]. Quando eu fazia cinema, ainda fazia arquitetura, ele já era fotógrafo, e na primeira vez em que fui filmar, ele era meu fotógrafo e nos tornamos amigos. Tudo que eu sei como funciona, o foco, as lentes, tudo aprendi com o Cesar.

Quando decidi fazer cinema e TV, na verdade, não havia cinema no Brasil nos anos 80. No Brasil estavam fazendo seis, sete longas por ano, não era uma profissão. Mas encontrei a televisão e fui por esse caminho.

PONTO DE PARTIDA PARA CONTAR UMA HISTÓRIA

Eu me interesso antes de mais nada por um tema. Estou fazendo um filme para a Netflix sobre a crise do clima. O tema me interessa muito. Decidi que teria que ser um filme sobre a crise, mas para adolescentes, jovens, pessoas que vão ter problemas no futuro, em 45 anos estarão num mundo muito ruim. Isso é tudo o que eu sabia.

Daí, comecei a pesquisar e ver adolescentes em países onde a crise já é muito grave, que estão sofrendo com a crise. Em princípio, pensei em escrever sobre vários personagens que pouco a pouco foram se conectando. Comecei com uma pequena semente, e quando as ideias se somam e se somam, o filme acontece, mas cada um tem um processo.

DESAFIOS

“Como capto atenção de uma adolescente e um adulto [em um filme voltado aos jovens sobre clima]? Esse é o meu desafio. Tenho 65 anos. Tenho que ver o olhar dos adolescentes, o que eles assistem, o filme terá um ritmo muito forte, com excesso de informação na tela o tempo todo, estou tentando descobrir as músicas, é um grande desafio pra mim, mas estou tentando aprender, é um mundo novo.

Preciso de desafios. Se eu não sou desafiado, não faço um trabalho bom. Uma coisa que é confortável, que penso que sei fazer, tenho que fazer alguma coisa que eu não sei fazer pra que eu me sinta vivo. Os meus piores trabalhos são os trabalhos onde eu me senti seguro.

A pandemia em 2020 não me atrapalhou porque me planejei para escrever o filme, então, fiz exatamente o que eu planejava. Agora estou esperando, esperando… Mas como esse é um filme que tem que rodar em vários lugares, tem que viajar muito, tenho que esperar a pandemia passar. Acho que vou poder pensar em viajar lá por setembro, outubro, espero. Tem uma parte que é em Bangladesh, e a epidemia na Índia e em Bangladesh está muito mal.

COMO VÊ ‘CIDADE DE DEUS’ HOJE?

“Nunca mais eu vi ‘Cidade de Deus’. A última vez foi em 2002 e nunca mais. Mas agora está na hora de rever. Quando se está trabalhando no filme, você assiste tantas vezes a mesma cena, que em um momento e insuportável, eu parei. Isso acontece com todos os filmes que faço. Mas agora está no momento de rever, é um filme que me encantava, mas vamos ver se agora me encanta também.

‘Ensaio sobre a Cegueira’ [muito mencionado como metáfora na pandemia] eu também não revi.”

Leandro Firmino, o lendário Zé Pequeno, em ‘Cidade de Deus’ / Divulgação

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