Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Autores fogem de julgamento moral em série sobre dependência química

Letícia Colin é Amanda, médica que se descobre dependente química em 'Onde Está o Meu Coração?' Série foi toda rodada em São Paulo. Foto: Fábio Rocha/Divulgação

Há coisa de alguns anos, ao levar um dos filhos à escola pela manhã, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, o roteirista e diretor Sérgio Goldenberg viu um rapaz bonito, bem vestido, mas descalço, com olhar perturbado, visivelmente sob efeito de drogas. Ao comentar o caso com seu parceiro de séries na Globo, George Moura, impressionou o amigo, que questionou: “o que leva alguém a esse estado e para onde isso leva?”

O par, que já criou  “O Canto da Sereia”, “Amores Roubados”, “O Rebu” (remake) e “Onde Nascem os Fortes” achou que o próximo trabalho poderia abordar esse drama, que é normalmente tratado como caso de polícia, e elegeu o crack, droga sempre associada à miséria e à rua, para discutir o assunto em outra esfera.

Em “Onde Está o Meu Coração?”, Amanda, vivida por Letícia Colin, é uma médica idealista e frustrada pelas vidas que não consegue salvar, alguém de classe média alta que busca uma compensação nas drogas, inicialmente em tom de recreação, como todo mundo que experimenta qualquer substância psicoativa. Ao se perder no uso do entorpecente, revelando ser dependente química, ela adoece todo o entorno.

“Diferentemente das narrativas brasileiras, em geral, que têm a questão da droga, fala-se muito de bandido, de tráfico, de periferia, de gente pobre, de morro, e a gente quis abordar a questão da dependência química pelo viés do núcleo que é a base da sociedade, que é a família. Porque quando uma pessoa adoece, na dependência química, todos em volta adoecem”, explica Moura, em conversa por videoconferência com o blog, ao lado de Goldenberg.

A série terá um primeiro capítulo exibido nesta segunda-feira (3) pelo Tela Quente, para chegar completa, em dez episódios, ao GloboPlay, na terça (4). Tive acesso ao primeiro capítulo, quando Amanda já é apresentada sob esse olhar que Goldenberg e Moura nos antecipam aqui. A tensão de ver a médica naquelas condições é latente, assim como a aflição familiar do pai (Fábio Assunção), da mãe (Mariana Lima) e do marido (Daniel Oliveira).

Mas Moura antecipa que este é um drama onde podemos esperar por “redenção”. Os autores sublinham o objetivo de gerar comoção no público e reforçar o olhar sobre a questão da saúde, derrubando tabus e preconceitos ainda muito vigentes.

“Quando você diz que tem pressão alta ou diabetes, ninguém diz: ‘seu guloso’. Mas quando se fala em dependência química, vem aquele negócio de o sujeito ser um fraco, um preguiçoso, um irresponsável. Nós queremos fazer uma abordagem sem o julgamento moral, buscando empatia. E as famílias entram em rota de colisão, quando, no fundo, todos estão querendo acertar: não tem uma escolha sobre quem tem razão”, fala Moura.

O autor conta que a ideia de a protagonista ser médica “foi uma escolha deliberada, como tudo na dramaturgia, mas sobretudo porque ela sabe o que essa substância faz nela,o quão destrutiva ela é, mas nem por isso consegue controlar a compulsão, então ela tem uma contradição dentro de si”.

A diretora Luísa Lima entre os autores George Moura e Sergio Goldenberg. Foto: Victor Pollak/Divulgação

PRECISAMOS FALAR SOBRE

Outro fator que levou os dois a elegerem o assunto para uma série é a paternidade. Moura tem quatro filhos, e Goldenberg, três. Em entrevista coletiva sobre a série com o elenco principal, Fábio Assunção, que tem uma história de superação com a dependência, lembrou que tem 49 anos e que esse drama, embora ainda hoje seja muito pouco discutido, não fazia parte do repertório de conversas entre pais e filhos da sua geração.

Autores, elenco e diretores estiveram presentes em reuniões dos Narcóticos Anônimos (NA), no Rio, e em clínicas de reabilitação. A conversa no NA era mais viva, lembram, com relatos de dependentes que estavam “limpos” há um mês ou há anos.

Moura se impressionou com o caso de um rapaz que estava longe da droga havia 15 anos e tinha tido uma recaída bem na véspera. “E ele estava ali no dia seguinte porque sabia que tinha que recomeçar”, lembra. Nas clínicas, os relatos já eram mais racionais, em um momento mais ou menos sob controle.

A dupla contou com a consultoria do psiquiatra Dartiu Xavier, especializado no assunto, que leu os capítulos e realizou ajustes do ponto de vista médico, além de ter dado um workshop para toda a equipe e elenco.

OLHAR FEMININO

“Onde Está o Meu Coração?” tem não só um protagonismo feminino, mas também a direção artística de uma mulher, o que empresta um olhar mais delicado, e não menos intenso, até a uma cena de sexo logo no primeiro episódio. Luísa Lima, que também esteve na direção da dupla em trabalhos anteriores, assume agora a titularidade da direção artística, cargo que antes cabia a José Luiz Villamarim, atual diretor de teledramaturgia da Globo. Ele apenas supervisionou “Onde Está o Meu Coração?”.

Feita para o streaming, a produção permite que vejamos a protagonista a consumir seu cachimbo sem os filtros que a TV aberta talvez impusesse, mas isso já está no episódio inicial, que estará na TV aberta, até porque vai ao ar após as 23h. Não se descarta que a produção sofra adaptações “etárias”, como diz Moura, se for preciso, em uma futura exibição completa na TV aberta, sem que isso afete a essência da história.

Amanda não está naquela Cracolândia a céu aberto que se espalhou no conhecimento das pessoas, mas sim numa espécie de Cracolândia Privé, onde o traficante cobra pelas pedras vendidas e por uma espécie de aluguel para abrigar sob o seu teto o consumo de sua clientela.

Toda filmada fora de estúdios, em locações ou nas ruas, a série foi 100% gravada em São Paulo, que entra em cena quase como um personagem do enredo. Aproveitando o fato de Daniel Oliveira viver um arquiteto, a equipe embarca em obras de Paulo Mendes da Rocha, Isay Weinfeld e Santiago Calatrava.

TRILOGIA

Quanto ao título, ele é antes de mais nada uma remissão a uma trilogia traçada pelos autores. “A gente chama de ‘Trilogia da Busca’, porque fizemos ‘Onde Nascem os Fortes’, ‘Onde Está o Meu Coração?’, as duas com a  palavra ‘onde’, e a terceira, a gente já tem o título, mas ainda não tem a história, será ‘Para Onde Vamos?’, tendo sempre as mulheres como protagonistas”, fala Moura.

“No ‘Fortes’, era uma mãe e uma filha, Cássia (Patrícia Pillar) e Maria (Alice Wegmann). E agora é a Letícia Colin como Amanda, essa médica que é muito idealista e autoexigente, que tem um pai médico, e no exercício da medicina ela se frustra, e tenta diminuir o processo de frustração bebendo, depois usando outras substâncias, e quando ela vê, perdeu o rumo da vida.”

REFERÊNCIAS

Entre os vários filmes e livros consultados pelos autores e recomendados ao elenco, Goldenberg destaca “A Noite da Arma”, de David Carr (1956-2015), que era jornalista da área de cultura e mídia do jornal The New York Times.

“Eu resisti um pouco porque duvidava que pessoas assim fossem usar crack, mas o livro é uma reportagem sobre si mesmo, ele vai olhando para o passado, olhando registros policiais, registros em internação de clínica, reencontrando amigos, e é uma história de redenção. Ele terminou a vida com a guarda das duas filhas e escrevendo no NYT. O clique dele para se tratar foi quando ele estava no carro, doidão, e ao olhar para trás, se deu conta de que estava com as duas filhas no banco de trás do carro.”

“Esse livro foi muito importante porque além de ser envolvente, nos ajudou a entender cada momento e a ter compaixão. Se não existe compaixão aí, as famílias vão se despedaçando”, completa.

EFEITOS DIVERSOS

Por fim, mas não menos relevante, convém estar alerta para o momento em que a série, produzida em 2019, chegará ao público. É preciso estar ainda mais atento e forte a este período de tantas perdas e confinamento. O fato de o coronavírus ser protagonista universal desses dias não dá trégua a outras doenças, e uma delas, também reforçada pela pandemia, está nos surtos mentais que fazem disparar compulsões adormecidas, muitas vezes compensadas por meio do álcool ou de outras drogas.

“O desejo do ser humano de usar substâncias psicoativas para mudar a realidade diante da impotência de transformá-las é um desejo que perpassa a humanidade, e agora, nesse momento da pandemia, muita gente está enchendo a cara”, cita Moura.

Nesse contexto, a série também questiona, e faz a plateia pensar, por que uns usam drogas de modo recreativo, sem se tornarem reféns daquilo, e outros se afundam em um caminho às vezes sem volta. Em suma, o assunto está longe de palatável, mas nos afeta, emociona e, sobretudo, é necessário.

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