Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

No ar pela TV Cultura, doc traz histórias inéditas sobre Boni no comando da Globo

Boni, homenageado por seus 85 anos por uma lista que ninguém reúne / Reprodução

Vai ao ar neste sábado, (19), às 22h15, pela TV Cultura, o documentário que amigos e colegas de trabalho fizeram em homenagem aos 85 anos de Boni.

Sujeito que mais tempo esteve no comando da Rede Globo e mais poder concentrou como tal, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, completoiu oito décadas e meia em 30 de novembro. A data mereceu de amigos, velhos conhecidos, a produção de um filme repleto de depoimentos que revelam histórias de bastidores deste homem que rejeita títulos como “todo-poderoso” e “gênio”.

Boni já escreveu dois livros de memórias –um mais técnico, factual, com datas e situações sobre contratações e produção de programas, e outro em que conversa com amigos que já morreram. Um terceiro livro organizado por ele, em 2000, no cinquentenário da TV no Brasil, reuniu relatos de 50 personalidades relevantes para o andamento do veículo (aliás, muita gente procura por esta publicação e não encontra, de modo que fica aqui a sugestão à Editora Globo para uma reedição daquele precioso material).

O documentário da vez, no entanto, traz histórias que nenhuma das obras anteriores relatou, principalmente porque aqui são os outros que falam sobre a obra e o modo de trabalhar de Boni. Um dos relatos mais pitorescas vem de Antonio Fagundes, que conta que Boni o chamou para perguntar se ele queria mesmo fazer a novela “O Rei do Gado”. “Quero, quero, já combinei com o Ruy faz tempo”, respondeu o ator, em referência ao autor Benedito Ruy Barbosa.

“Tem certeza que você quer fazer?”, insistiu Boni. “Eu quero. Por quê?”, questionou Fagundes. “O cara é corno, pô”, reagiu Boni. “Eu ri”, comentou Fagundes no filme, emendando ao chefe: “Não se preocupe. Se  eu conheço o Benedito, todo mundo, no fim da novela, vai querer ser corno, porque ele vai  fazer um puta personagem”. Fagundes reconheceu que Boni tinha uma preocupação em preservar a imagem de seus principais atores.

Outro enredo impensável resgata o incêndio de que a Globo foi vítima, em suas instalações na TV Paulista, em São Paulo, em raro depoimento de Joe Wallach, executivo que chegou ao país como representante da Time-Life, grupo com o qual a Globo tinha um acordo em seus primeiros anos no ar. Quando a Globo conseguiu se livrar da Time-Life, Wallach acabou ficando no Brasil e se juntando a Boni e Walter Clark, levando ao grupo noções financeiras do negócio que os outros dois não tinham.

Conta Wallach: “Nós saímos do Rio às onze horas da noite para chegar em São Paulo às 7 horas da manhã. Chegando lá, encontramos Boni, que estava lá com revólveres para todos nós, porque ele achava que talvez os terroristas estavam lá e ele estava pronto para tudo”, lembra Wallach. Na ocasião, a sede da Globo na Rua das Palmeiras pegara fogo pouco depois de um incêndio no Teatro Paramount, da Record, e na véspera de outro incêndio, dessa vez na Bandeirantes, em 1969, o que deu a todos a certeza de se tratar de ação orquestrada por ativistas políticos contrários à ditadura militar.

Galvão Bueno lembra de momentos cruciais que teve o chefe lhe falando ao pé do ouvido, no ponto eletrônico, em transmissões de corrida de Fórmula 1 e em cerimônia de abertura de Olimpíada, por coisa de quatro horas, encerrando o expediente com um convite para jantar com ele.

Glória Menezes recorda que até figurante no set, quando mal posicionado, chamava a atenção do homem. “Ele via absolutamente tudo, era muito cuidadoso, nada escapava”. O relato da atriz me fez lembrar que na época de “Gabriela”, foi Boni quem notou que as unhas de Sônia Braga estavam muito cuidadas para a personagem, orientando o diretor Walter Avancini e desconstruir um pouco aquela imagem.

O relato de Washington Olivetto no documentário dá uma dimensão da precisão com que Boni agia nos momentos de maior fragilidade:

“Quando eu fui sequestrado, no final de 2001, dia 11 de dezembro, eu literalmente sumi, e sumi muito, sumi por 53 dias, até o dia 2 de fevereiro do outro ano. O Boni, no período em que eu andei sumido, procurou dar a maior assistência pra minha família, o que precisasse, para os meus sócios e tal, e no dia que eu apareci, no outro dia -eu fiquei 53 dias-, ele apareceu na minha casa com uma garrafa de 1,5 litro, que é rara pra cacete, cara pra cacete, de Chateau Mouton Rothschild, da safra de 1953, a garrafa número 53, porque eu fiquei 53 dias.”

Glória Maria narra um episódio em que Boni deu um pito num técnico de som por uma falha de áudio no Jornal Nacional.

Roberto Carlos, Sérgio Mendes e Christiane Torloni destacam a lealdade do homenageado.

Regina Casé lembra que quando seu pai morreu, Boni foi o primeiro a lhe telefonar para enaltecer a figura de Geraldo Casé, colocando-se à disposição para cuidar de tudo. Quando nasceu Benedita, filha da atriz, fruto de um parto complicado, ele ofereceu todo o apoio, e quando ela apresentou os primeiros problemas de surdez, foi Boni quem a orientou sobre tratamentos médicos.

Esse é mais um ponto curioso do biografado em questão. Para muita gente, hobby é jogar golfe, colecionar itens, viajar. Para Boni, a medicina, uma ciência no mínimo complexa, é uma espécie de hobby. Amante confesso do ofício, ele já disse em várias ocasiões que se não fosse profissional de TV e publicidade, teria sido médico. No filme, um de seus depoimentos atesta que ele não tem CRM, o número do Conselho Regional de Medicina, mas tem CRC, do Conselho Regional de Charlatanismo, brinca.

Hélio Costa e Galvão Bueno também narram de que forma o chefe os ajudou com problemas de saúde de seus respectivos filhos.

“Eu tinha um médico muito ciumento, que dizia que ou eu seguia o tratamento dele ou o do Boni, que eu escolhesse. Eu disse: ‘Então fico com o Boni'”, relatou o amigo Ricardo Amaral.

Os famosos esporros de Boni, algo que hoje talvez resultasse em queixas de assédio moral, não foram esquecidos. Marcelo Madureira, pelo Casseta e Planeta, e Nelson Motta se recordam que as broncas eram cirúrgicas e nunca aconteciam sem lhes apresentar um rumo. É o chefe dos sonhos, aquele que não só aponta o seu erro, mas mostra qual caminho se deve seguir, dizem.

Os depoimentos incluem ainda Jô Soares, Fernanda Montenegro, Ney Latorraca, Miguel Falabella, Susana Viviera, Lucas Mendes, Solano Ribeiro, Renato Aragão, Cid Moreira, Hans Donner, Maria Adelaide Amaral, Maitê Proença, Fausto Silva e Gilberto Braga, que conta que foi Boni quem batizou “Vale Tudo” (1988), obra que eu considero a melhor novela de todos os tempos.

Lima Duarte abre e fecha a edição, encerrada com imagens da homenagem que a Beija-Flor, escola de samba de Boni, lhe prestou com o tema principal em 2014.

“O Boni jogava em todas as posições, ele se metia em engenharia, guarda-roupa, música, na pauta do Fantástico e até na voz dos jornalistas”, conta Lucas Mendes, lembrando como Paulo Henrique Amorim lhe tomou o emprego de correspondente da Globo em Nova York.

São relatos que nos levam a ver, sim, um gênio na sua essência, embora o homenageado dispense tal título, e, mais do que isso, alguém onipresente, capaz de se ocupar da saúde alheia, da transmissão em tempo real de um evento esportivo, dos amigos em apuros, da figurante, da caracterização dos atores, do incêndio e até dos terroristas, que naquela ocasião, pelo menos, não apareceram.

Jô e o maestro João Carlos Martins reforçam que se trata de um gênio, análise que combina com a do publicitário Nizan Guanaes: “O Boni é um gênio, uma injustiça de Deus. Deus escolhe assim: ‘esse aqui vai ser completamente fora da curva, Boni é isso”.

“Uma coisa que eu não aceito é esse negócio de gênio”, rebate Boni. “Eu nunca me considerei gênio e nem todo poderoso, eu sempre fui um louco sonhador, e suportado, nos meus delírios, pela minha mulher, Lu, pelos meus filhos e pelos meus amigos”.

Boni deu seu depoimento para o filme imaginando se tratar de mais um programa em produção para os 70 anos de TV. Não conhecia a intenção do documentário, que lhe foi entregue por ocasião do aniversário de 85 anos. A TV Cultura tomou conhecimento do filme por meio deste post, agora atualizado, e adquiriu com a Globo autorização para uso de imagens do acervo da emissora e de seus profissionais.

Com coordenação de Therezinha de Almeida, o doc é inspirador. Em vez de o espectador se sentir minúsculo diante desse sujeito, prevalece a vontade de ter a convicção e o feeling dele para tomar decisões. Mas esse é um talento mais raro que a garrafa de vinho que Boni conseguiu encontrar, sabe-se onde e como, com aquela precisão de números, para presentear Olivetto.

 

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Cristina Padiglione

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