Léo Vieira e o machismo: gays homens sofrem mais que mulheres na TV
Leonardo Vieira foi fotografado beijando outro homem em uma festa. Um pedaço do mundo veio abaixo. “Mas como é que pode?”, questionam uns e outros. “Galã? Gay? Não pode ser”. O ator escreveu uma longa carta sobre sua orientação sexual, coisa capaz de nos fazer virar uma página e avançar, texto pronto para marcar posição nesse enredo, em um território que se diz progressista, só que não: poucos universos são mais conservadores que os da indústria do entretenimento. Tudo obedece rigorosamente à imagem que a publicidade aprecia. Prevalece o gosto da massa, e não é fácil desafiar esses parâmetros.
A TV é muito mais cruel com gays meninos do que meninas. Enquanto boa parte delas desfila por aí com seus pares, recebendo apoio em redes sociais, os rapazes ainda são muito cobrados pela macheza que a publicidade e a imagem da televisão e do cinema gosta de explorar neles. Menina com menina ainda é fetiche para a maioria do público. Já os rapazes não despertam a mesma empatia e são, nesse caso, vítimas cruéis de um machismo velado, jamais discutido nesse métier. Filmes pornôs anunciados como LGBT são aqueles cujas cenas não se resumem à prática do sexo entre garotas, imagem comum, quase essencial, nos filmes “heteros”. Menina com menina é fetiche, alegoria. Menino com menino é segmentado como LGBT.
É de se perguntar por que a indústria do consumo/propaganda ainda cobra tanto dos rapazes. Meninos gays, assim como as meninas, são consumidores, em geral, com mais poder aquisitivo que os héteros. Na média geral, héteros pagam mais escola (e isso acaba com o poder aquisitivo de qualquer um), entre outros gastos com filhos, do que gays. É claro que homossexuais também têm filhos, mas, repetindo e destacando, NA MÉDIA GERAL, veja bem, na média geral, é um público que pode se dar muito mais ao luxo de gastar em supérfluos e viagens do que os héteros.
Dito isso, gostaria de afirmar que foi-se o tempo em que o mundo se viu perplexo, de queixo caído, diante da revelação de que Rock Hudson, um dos maiores galãs de Hollywood, era homossexual. De 1985 para cá, as coisas melhoraram bastante, mas ainda se mata muito por homofobia e na indústria do entretenimento, mais precisamente da ficção, isso ainda é mais tabu do que deveria ser.
Fernanda Gentil, jornalista da Globo, assumiu há pouco tempo seu romance com outra moça, pelas redes sociais. Foi muito mais apoiada do que achincalhada. E se um jornalista de um canal relevante se pronunciasse como tal? Qual seria a reação do público? E da empresa onde ele trabalha?
Em sua carta, Vieira faz questão de dizer que não está saindo do armário, visto que nunca posou de galã hétero, embora o tenham alçado a tal condição quando ele surgiu, na novela “Renascer” (1993). Virou capa de revista de um dia para o outro, mas, sejamos justos, não me lembro de tê-lo visto dando entrevistas por aí dizendo que seu sonho era encontrar a mulher ideal. O texto nos leva à reflexão sobre como essa questão é tratada, ainda hoje, do cinemão de Hollywood à indústria mundial da TV. Não é uma questão brasileira, o que torna a coisa ainda mais grave. Vieira diz que vai ver a partir da carta quais os efeitos que ela causará em sua carreira. É um desafio à indústria da imagem.
Odilon Wagner atestou a força da desgraça quando interpretou um homossexual em novela. Perdeu contratos publicitários e amargou alguma quarentena, até ter o personagem devidamente diluído. E era ficção, veja bem. De “Por Amor” (1996) até o Crô (Marcelo Serrado) de “Fina Estampa” (2012) ou o Félix (Matheus Solano) de “Amor à Vida” (2013), podem até achar que a coisa evoluiu. Serrado e Solano não tiveram a mesma represália sofrida por Odilon Wagner. Aí entra uma outra leitura, a meu ver com fundamento, feita pelo autor Aguinaldo Silva. Com conhecimento de causa, ele fala que o público só aceita gay em novela quando há humor, daí a caricatura de seus personagens homossexuais (Crô, Téo Pereira/Paulo Betti e Xana/Ailton Graça em “Império”, em 2014). A exceção coube a José Mayer, que vivia um gay no armário e sofria por isso.
É preciso mudar essa cena. Não é justo entender que um ator só pode pagar de galã em novela se omitir sua orientação sexual. Quem tem discernimento suficiente para compreender que intérpretes de psicopatas não saem matando por aí tem de assimilar que a ficção deve cobrar menos da vida real desses senhores.
Abaixo, a longa carta de Léo Vieira.
Infelizmente, vivemos em um país ainda cheio de preconceitos e a homofobia é um deles. Revelar-se homossexual não é fácil pra ninguém e acredito que seja ainda mais difícil para uma pessoa pública. Sempre achei “assumir” um termo pesado demais. Assume-se um crime, um delito, um erro e uma falta grave. Será que estou errado em ser quem sou? Será que tenho alguma culpa para assumir? Esse termo “assumir” me perseguiu como se eu tivesse cometido algum crime e que eu teria que fazer o “mea culpa” e ser condenado. Nunca me senti criminoso ou culpado por ser homossexual, eu me sentiria assim se tivesse matado alguém, ou roubado alguém ou a nação. O fato de ser gay nunca prejudicou ou feriu alguém, a não ser a mim mesmo; e não escolhi ser gay. Se pudesse escolher, escolheria ser heterossexual com certeza. Seria muito mais fácil a vida, não teria que ter enfrentado as dificuldades que enfrentei com meus pais, não seria discriminado em certos círculos sociais, teria uma família com filhos (sempre sonhei em ser pai), não sofreria preconceito de colegas, não seria atacado nas ruas, não seria xingado nas redes sociais, não deixaria de ser escolhido para certos personagens, seria convidado para mais campanhas publicitárias e capas de revista. Tenho vivido e venho sofrendo preconceito durante toda a minha vida e na maioria das vezes ninguém percebeu, só eu senti na pele, mas nem por isso me vitimizei.
Nunca deixei de fazer nada na minha vida privada por ser ator famoso. Sempre fui a lugares gays, namorei caras incríveis, tenho vários amigos e amigas gays e também frequento lugares héteros, tenho amigos héteros, vou ao supermercado, à feira… Sempre tive uma vida normal como todo ser humano merece ter. Nunca me senti especial por ser ator e sempre fiz questão de transitar livremente, mesmo que muitas vezes tivesse que parar um minuto da minha existência para tirar uma foto ou dar um autógrafo. Agora, pessoas do público as quais dediquei meu tempo, atenção e carinho, me atacam nas redes sociais de maneira vil e violenta, porque “descobriram” que eu sou gay. Eu nunca disse que não era, só não saí por aí com uma bandeira hasteada. Eu não traí a confiança de ninguém, sempre fui o que sou. Algo muito simples de ser entendido se em nossa sociedade essa questão ainda não fosse um tabu no ano de 2017.
Sobre o episódio do “beijo gay”, que a princípio parecia ser um “escândalo do último minuto” ou uma pedra no caminho, eu parei para refletir e vi que era, na verdade, um presente. Uma ótima oportunidade para tirar das minhas costas algo que me fez sofrer por muitos anos. Agradeço sinceramente ao site e ao fotógrafo que publicaram as fotos do beijo, pois assim me vi na obrigação de escrever essa carta e deixar clara a minha posição, tirando, assim, um peso que carrego há anos nas costas, além de poder ajudar a tantas pessoas que sofrem preconceitos, discriminação ou ainda não assumiram sua sexualidade. Estou me sentindo bem mais leve, mas poderia estar me sentindo bem mais pesado, caso eu não tivesse o suporte de minha família e amigos. Embora a publicação tenha me feito um grande favor, pode ter me prejudicado imensamente profissionalmente (só saberemos no futuro) ou poderia ter destruído minha família, se por acaso eles já não soubessem da minha situação. Infelizmente a mesma mídia que se diz contra a intolerância, a discriminação e o preconceito, alimenta esses sentimentos irresponsavelmente, sem medir as consequências. É incrível que obras como o “Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, baseada em um beijo entre homens e transformado em sensacionalismo midiático, ainda sejam atuais.
Essa carta aberta aqui não é um pedido de desculpa, pois não acho que deva pedir desculpas por ser gay. Pelo contrário: sempre tive orgulho de ser quem eu sou. Essa carta é um manifesto contra a homofobia. Descobri estupefato que homofobia não leva ninguém à cadeia. Este crime, que pode ser devastador na vida das pessoas, não tem defesa à altura. Algumas cometem suicídio e outras matam por simples preconceito, que, aliado à violência verbal, psicológica ou física, é uma das mazelas de nossa sociedade.
Não gostaria de me colocar no papel de vítima, mas sou e não posso deixar de querer meus direitos como cidadão de bem e exigir justiça para mim e, quiçá, para tantos outros homossexuais em meu país que também sofrem com isso diariamente e por anos em suas vidas. Homofobia precisa ser tratada com seriedade pela justiça e pela sociedade.
O objetivo dessa carta não é só esclarecer, de uma vez por todas e a quem interessar possa, a minha orientação sexual, mas também alertar para o verdadeiro crime psicológico e letal que as pessoas cometem ao perderem tempo de suas vidas para atacar os outros na internet ou nas ruas.
O que ainda me surpreende é a violência, a guerra, a discriminação, a intolerância, a falta de respeito entre pessoas iguais que se atacam pela diferença, seja pelo fato de alguém ser gay, hétero, preto , branco, rico, pobre, evangélico ou muçulmano. Se sou gay, isso não vai mudar em nada a vida de ninguém ou a de quem estiver lendo isso, mas meu caso talvez possa ajudar pessoas que sofrem com a discriminação sexual ou com qualquer outra forma de discriminação e preconceito. Não consigo entender porque as pessoas ainda se preocupam tanto com a sexualidade alheia e fazem disso motivo de discórdia e violência.
Existem mulheres e homens na internet dizendo coisas horríveis a meu respeito. Tenho sofrido ataques homofóbicos pelo fato de ter sido fotografado beijando um homem. Se eu fosse hétero jamais me envolveria com uma mulher preconceituosa e deselegante, porque também não me envolveria com um homem preconceituoso e deselegante. Ser um ser humano com bom caráter, honesto, amigo, leal, educado, gentil, generoso e outras qualidades é muito mais importante do que quem você beija ou se relaciona sexualmente, independentemente se você é homem ou mulher.
Por isso estou indo esta tarde à comissão dos direitos humanos entender quais são os meus direitos como cidadão e quem sabe assim servir de exemplo para que meu caso não seja mais um e isso possa mudar algo em nossa legislação.
Para terminar esse manifesto gostaria de homenagear e agradecer algumas pessoas que, antes de mim, tiveram a coragem de dar sua cara à tapa e declararam suas orientações sexuais sem medo de enfrentar as consequências: Kevin Spacey, Rick Martin, Ian McKellen, Alessandra Maestrini, Marco Nanini, Ney Matogrosso, Daniela Mercury e tantos outros. Deixo aqui meu muito obrigado e todo meu respeito a todos que lutam por esta causa: a da liberdade para que todos possam ser quem são.
Bom, a vida continua e quem quiser conferir meu trabalho, estou em cartaz no teatro Folha em São Paulo, a partir do dia 11 de janeiro, sempre as quartas e quintas, às 21 horas, na comédia Nove em Ponto, de Rui Vilhena.”