Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Caso Marcius Melhem transforma comédia em drama, onde a vida não imita a arte

O ator, roteirista e diretor Marcius Melhem / Reprodução

As revelações da advogada Mayra Cotta, que assessora juridicamente as atrizes que acusam o ator, roteirista e diretor Marcius Melhem de assédio sexual são um choque em todos os sentidos, e cada episódio dessa série que vem à tona causa mais perplexidade.

Em reportagem exclusiva da colunista da Folha de S.Paulo Mônica Bergamo, vieram a público detalhes que nunca foram conhecidos sobre o caso e informações que apareceram de forma muito nebulosa até então. O que foi apresentado como um episódio de assédio moral desde o início do ano, revelou-se, na verdade, uma série de relatos de assédios sexuais, e não venham dizer que é tão grave quanto, porque não, é muito mais traumático e covarde, mesmo porque neste caso de ambiente corporativo, embute o assédio moral.

São relatos que chocam sobretudo pelo histórico artístico de Melhem, alguém a quem defendi neste blog como cabeça de resistência à pasteurização e ao conservadorismo que ocupou lugar no humor da Globo por alguns anos, sobretudo entre 2006, quando perdemos Bussunda e o Casseta & Planeta já começava a apresentar desgastes, e 2013, quando foi criado o “Tá no Ar: A TV na TV”, obra de Melhem, do diretor Maurício Farias e de Marcelo Adnet, que estreou sob aplausos gerais em 2014 e ficou no ar até 2019.

Esquetes contra violência de gênero, contra o racismo e intolerâncias de toda ordem desfilaram não só pelo “Tá no Ar”, mas também em piadas de um repaginado, e bem resolvido “Zorra”, na própria “Escolinha do Professor Raimundo” e no ousado quadro Isso a Globo não Mostra, no Fantástico.

As piadas eram fantásticas, pena que a vida real não imite a arte e o riso esteja se amarelando a cada passo desse complexo enredo cheio de camadas, hoje totalmente enquadradona classificação de drama, longe das comédias criadas pelo acusado. Seja lá qual for o resultado das investigações sobre as acusações feitas por essas atrizes, seja lá qual forem os argumentos da possível defesa de Melhem, que se manifestou de modo muito discreto até agora, o estrago está feito.

Em 17 de agosto passado, quando Marcelo Adnet esteve no Roda Viva, a repórter da Folha Anna Virgina Balloussier o questionou sobre as acusações de assédio feitas a Melhem, seu ex-colega de criação no “Tá no Ar”, e o entrevistado disse que não estava a par dos acontecimentos para fazer qualquer julgamento, alegando que já não o via desde janeiro. Anna insistiu. Perguntou se nunca ouviu queixas “das mulheres” que o acusavam de assédio. E ele se esquivou.

A resposta soou insuficiente, até porque eles trabalhavam juntos quando a primeira denúncia surgiu, em um grupo coletivo que criava um sucessor para o “Tá no Ar”, que não vingou para além da grade deste ano, o “Fora de Hora”. E a única acusadora cuja identidade é conhecida, que, aliás, detonou todo a sequências de denúncias a seguir, é a de Dani Calabresa, ex-mulher de Adnet. A âncora Vera Magalhães então reforçou a questão e falou nominalmente em “assédio sexual”. Eu, que até ali só conhecia acusações de cunho moral, até tuitei do meu sofá: “ué, não era assédio moral?”.

Mas, vejam só, Adnet não a corrigiu naquele momento, o que me causou ainda mais surpresa. Seria natural que ele tivesse se assustado, como eu, caso as histórias não tivessem qualquer suspeita de terem se desenrolado no campo sexual. Mas não. E olhe que Vera lembrou a Adnet que ele, como alguém que revelou recentemente ter sofrido assédio sexual, ainda na infância, deveria se posicionar em solidariedade às vítimas.

Adnet tem sido bombardeado por isso no Twitter: como alguém que foi vítima de assédio sexual pode “passar pano”. Não faço esse paralelo nem esse julgamento. São casos absolutamente diferentes. Antes de mais nada, Adnet se expôs à turba das redes sociais, recebendo muitas ofensas intolerantes após relatar seus traumas. As atrizes, no entanto, não vieram a público para relatar suas histórias porque temem ficar marcadas e tentam reduzir o ônus de acusadoras. Mas tamanha discrição acabou lhes rendendo um prolongamento desse enredo que só um roteirista ruim escreveria, em parte por omissão da própria Globo.

“Sabemos como mulheres que denunciam homens por assédio sexual são tratadas no tipo de sociedade em que a gente vive”, argumentou a advogada das atrizes a Mônica Bergamo.

A figurinista Su Tonani, que se expôs, como Adnet, ao denunciar assédio sexual sofrido por parte do ator José Mayer, desistiu de fazer uma denúncia formal contra ele na Justiça. Já as atrizes, que optaram pela discrição e reclamaram no departamento de compliance da empresa, conseguiram a cabeça de Melhem, que rescindiu seu contrato em agosto, após passar quase seis meses tratando de uma delicada cirurgia de coração de uma de suas filhas nos Estados Unidos. E houve uma nota da Globo sobre o desligamento dele que pareceu absolutamente afável às acusadoras, com agradecimento pelos serviços prestados.

Quando a Globo pensou que tudo estava resolvido ao extinguir até o cargo de Melhem e descentralizar a área de humor, sob o comando do diretor de teledramaturgia, Silvio de Abreu, as vítimas deixaram claro que as coisas não ficariam assim, com resposta tão branda. Se as soluções corporativas forem tão rasas para episódios da gravidade relatada pela advogada a Mônica Bergamo, nem acusados nem acusadores se sentirão motivados a melhorar o ambiente.

Não é uma equação simples. Embora se reconheça o avanço feito contra ações de misoginia, assédio moral e sexual, e antirracistas no mundo corporativo, é certo que muita coisa acontece nos bastidores diante dos olhos de todos e pouca gente se dispõe a ver, o que alimenta a ousadia de quem ofende e se sente no poder de manobrar seus subordinados. Enquanto alguém não se expõe e dá a cara à tapa, mesmo que seja por meio de advogados, a série dramática não avança e o roteiro padece.

Mas é uma situação de fato delicada para a vítima, ainda mais quando assédio sexual se dá no ambiente de trabalho, configurando, por si só, um assédio moral, como já disse aqui.

Em carta aberta e replicada em tuítes, Melhem pela primeira vez se manifestou:

“Estou disposto a reconhecer meus erros, pedir desculpas e, se possível, reparar pessoas que eu tenha de qualquer forma magoado. Quero enfrentar isso com verdade e humanidade e me expor se for preciso. Fazer jus a todos esses anos em que pautas como as do feminismo foram abraçadas pelo humor transformador em que eu acredito. Fiz parte de um grupo de homens e mulheres que se orgulha de usar o humor como um instrumento contra o preconceito. Mas mesmo abraçando profissionalmente a causa feminista, ainda combato o machismo dentro de mim, erro, posso ter relações que magoem. Tento melhorar e aprender. E queria muito falar sobre isso.”

 

Procurada pela reportagem de Mônica Bergamo para apresentar sua versão às acusações, a Globo se posicionou da seguinte forma, por meio de sua Comunicação:

“A Globo não comenta assuntos da área de compliance, mas reafirma que todo relato de assédio, moral ou sexual, é apurado criteriosamente assim que a empresa toma conhecimento. A Globo não tolera comportamentos abusivos em suas equipes e, neste sentido, mantém um canal aberto para denúncias de violação às regras do Código de Ética do Grupo Globo. Por esse Código, assumimos o compromisso de sigilo do processo, assim como o de investigar, não fazer comentários sobre as apurações e tomar as medidas cabíveis, que podem ir de uma advertência até o desligamento do colaborador. Mesmo nas hipóteses de desligamento, as razões de compliance não são tornadas públicas.
Somos muito criteriosos para que os estilos de gestão estejam adequados aos comportamentos e posturas que a Globo quer incentivar e para que as medidas adotadas estejam de acordo com o que foi apurado. Não foi diferente nesse caso. 
Isso não quer dizer que os processos de compliance sejam estáticos. Ao contrário. Eles evoluem constantemente para acompanhar as discussões da sociedade. As práticas e as avaliações são revistas o tempo inteiro, assim como são propostas e acolhidas sugestões de melhoria nos mecanismos de comunicação interna. A própria sociedade está se transformando e a empresa acompanha esse processo.”

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Cristina Padiglione

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