Cena com Jesuíta Barbosa vale mais que 100 campanhas por respeito à diversidade de gêneros
Drag queen tratada como Shakira do Sertão na boate da fictícia cidade da série “Onde Nascem os Fortes”, Ramirinho, personagem de Jesuíta Barbosa, sofre pela opressão de ter de ser quem não é. Teme o pai, Ramiro, o malvado juiz vivido por Fábio Assunção, que não o batizou como Junior/Filho só para homenagear a si, mas quer também transferir para o herdeiro todas as suas ambições.
No primeiro capítulo, tivemos uma imagem aparentemente divertida de Shakira, em pleno exercício de seu ofício. Naquele momento, a performance da drag foi até um respiro de leveza em meio à tensão que resultaria no sumiço de Nonato (Marco Pigossi). Shakira surgiu cantando, pela voz do próprio Jesuíta, o hit “O Amor e o Poder” (Rosana). Já no terceiro episódio, Jesuíta ressurge em um sequência dramática, nada divertida, que expressa toda a tristeza de alguém forçado a viver sob a máscara idealizada pelo pai.
Ramiro é um magistrado que vive de chantagear quem lhe deve favores e de vingar favores não atendidos. Nem sonha que por trás da porta do quarto do filho, está um Ramirinho envaidecido diante do espelho, com shortinho de Shakira, unhas postiças, cabelos presos para o uso de peruca, devidamente maquiado. Quase cochichando, para não ser ouvido pelo pai, ele engata um esboço de seu show, cantando os versos icônicos de Rosana – “Como uma deusa, você me mantém / E as coisas que você me diz, me levam além (…)”.
O ensaio particular é bruscamente interrompido pelas batidas de Ramiro à porta do quarto. Shakira se desfaz em Ramirinho só pela expressão do rosto, sem uma palavra de Jesuíta. Ele prende a respiração para não ser ouvido pelo juiz, demora a responder, para depois alegar que estava no banheiro. Do lado de fora, o pai o convoca para conversar. E ele então se despe de sua fantasia querida, arranca unhas e limpa o rosto, sob lágrimas de um choro silencioso, doído, em uma sequência que vale mais que 100 campanhas por respeito à diversidade de gêneros.
Música auxilia narrativa
Enquanto Ramirinho arranca o make up, ouvimos um trecho de “Mal Necessário”, canção famosa pela voz de Ney Matogrosso, na cena cantada pelo próprio Jesuíta. São versos em absoluta consonância com sua condição infeliz, ali denunciada – “Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher / Sou a mesa e as cadeiras desse cabaré / Sou o seu amor profundo / Sou o seu lugar no mundo / Sou a febre que lhe queima, mas você não deixa / Sou a sua voz que grita, mas você não aceita / O ouvido que lhe escuta quando as vozes se ocultam nos bares, nas camas, nos lares, na lama / Sou o novo, sou antigo, sou o que não tem tempo / O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento / O que nunca lhe fez falta / O que lhe atormenta e mata / Sou o certo / Sou errado / Sou o que divide / O que não tem duas partes, na verdade existe / Oferece a outra face, mas não esquece o que lhe fazem / Nos bares, na lama, nos lares, na cama”.
A música, aliás, é um componente mais do que relevante em “Onde Nascem os Fortes”. Todo o processo de gravações foi permeado por músicas no set, sempre a fim de provocar nos atores uma imersão e concentração no universo abordado por George Moura e Sérgio Goldenberg. O uso da música no set, e não necessariamente da trilha da produção em realização, é um método há tempos adotado por José Luiz Villamarim, o diretor artístico de “Onde Nascem os Fortes”.
Na edição que está no ar, e isso já é latente na exibição de três episódios, a música se integra com perfeição ao roteiro, funciona como um complemento do texto, capaz mesmo de auxiliar a compreensão da narrativa.
Dar à trilha sonora esse papel, sem que a cena se torne refém da letra, é tarefa complexa e aqui executada com plena eficiência. Daí sua genialidade na composição do que tem sido visto em “Onde Nascem os Fortes”.