Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Criadores de ‘Aruanas’ falam sobre ‘dramaturgia ativista’

Imagem do penúltimo capítulo / Reprodução

Quem compareceu diante de “Aruanas”, série que fez carreira de um ano no streaming do Globoplay e desembarcou na Globo há exatas dez semanas talvez não conheça o DNA dessa história que não se acanha em trabalhar uma dramaturgia declaradamente ativista, ao contrário, faz disso um propósito, com orgulho, por meio da produtora Maria Farinha Filmes.

Identificado com a bandeira da série, que encerra nesta terça-feira (30) sua exibição na TV aberta, no momento mais crítico atravessado pela devastação da Amazônia, de povos indígenas e de uma biodiversidade cuja ausência custará muito caro a todos nós, o TelePadi abre espaço a um artigo dos criadores de “Aruanas”, Estela Renner e Marcos Nisti, que assinam direção e roteiro, respectivamente, do enredo protagonizado por Leandra Leal, Taís Araújo, Débora Falabella e Luiz Carlos Vasconcellos, com Camila Pitanga e Thainá Duarte.

Em tempo: a 2ª temporada já entrou em produção e o título vem rendendo 20 pontos de audiência na Grande São Paulo, onde cada ponto porcentual equivale a mais de 203 mil pessoas, segundo dados do instituto Kantar Ibope.

ARTIGO DE ESTELA RENNER E MARCOS NISTI

A DRAMATURGIA ATIVISTA

A @mariafarinhafilmsbr nasceu em 2008 com o propósito de criar projetos audiovisuais com causas. Nascemos dentro de uma ONG, nossos documentários “Muito Além do Peso”, “O Começo da Vida”, “Criança, Alma do Negócio” foram temas de ENEM e campanhas da UNICEF. Há oito anos a urgência da emergência climática nos incomodava e seu relógio minguante já era desesperador, tivemos a ideia de levar nossa veia ativista para a ficção, com o intuito de falar com um número de pessoas ainda maior do que falávamos através dos nossos documentários. Criar personagens, tramas, tornar as narrativas críveis e tocantes era o nosso novo maior desafio quando escolhemos explorar o universo da dramaturgia.

Quantas vezes já não nos formamos em medicina com “Sob Pressão”, “E.R” ou “Greys Anatomy”? Com “Suits” ou “The Goodwife” todos acreditamos entender do complexo mundo do direito. Sem contarmos as discussões políticas baseadas em “House Of Cards” ou as dúvidas sobre casos criminais com o que aprendemos em “CSI”. “Aruanas” foi criada para explorar esse universo das instituições ambientais e as figuras que estão na linha de frente, repletas de camadas, humanidades e um único objetivo: defender o meio ambiente. Sabemos o potencial inspirador de palavras, histórias e ações – e como essa somatória pode mudar o mundo. Quando damos nome a uma questão, ela passa a existir mais concretamente. E se ela se torna visível e assim, pode ser questionada, modificada.

Foram anos de pesquisas em ONGs parceiras, como Greenpeace e Instituto Alana. Horas e mais horas de entrevistas com grandes nomes do ativismo. O mergulho em notícias e leituras e nosso trabalho anterior com documentários nos trouxe a noção de que a sinopse que construíamos exigia diversidade, representatividade e um compromisso muito sério com a realidade daquelas pessoas e situações que decidimos retratar.

Ativismo é sinônimo de ação. Para ter mudanças é necessário agir, transformar e ressignificar. Para isso, começamos pelos bastidores: protagonismo feminino – entre as atrizes principais, três negras; aproximadamente 37% do elenco formado por atores do Amazonas; elenco indígena; uso da língua da etnia tukana. Sem contar a equipe de produção, cuja a metade foi formada por mulheres, e também contou com a expertise de profissionais audiovisuais de Manaus.

Com personagens esféricas, cheias de luz e sombras, que fogem do estereótipo de heroínas –são pessoas ordinárias fazendo coisas extraordinárias-  os espectadores tiveram reações diversas com as tramas: ora se emocionaram com o drama de Clara, uma garota fugindo de uma relação abusiva, ora tiveram muita raiva da traição entre melhores amigas em pleno movimento feminista crescente, e também refletiram sobre as decisões de Luiza sobre a maternidade. Nas redes, muitos compartilharam, indicaram aos amigos e se engajaram nessa história, e identificaram situações fictícias muito parecidas com a realidade.

Nos primeiros quatro meses de 2020 o Brasil bateu o recorde de desmatamento florestal (*INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Notícias revelaram também o aumento expressivo da invasão de garimpeiros e madeireiros em terras indígenas no último mês de abril. Crimes ambientais que se aproveitam das dificuldades impostas pela chegada da Covid-19 para ocupar e destruir ainda mais a floresta -e, consequentemente, levar o vírus para os povos que lá vivem. A pandemia é também uma resposta do descaso com o meio ambiente. O desequilíbrio ambiental é fator agravante no desenvolvimento do vírus.

A identificação da série com as últimas notícias e o entendimento de que o tema é atemporal já são um primeiro ponto de reflexão. Se tornam ativistas aqueles que optam por agir. Levar o tema para a mesa de jantar, sair da zona de conforto, pesquisar sobre indígenas, florestas, meio ambiente, iniciativas que podem ser feitas de dentro de casa, doar, forma também um defensor da vida.

O Brasil já atingiu a marca de país que mais mata ativistas no mundo. A maioria deles, defensores ambientais. Precisamos contar essas histórias. Lembrar e proteger essas pessoas que estão na linha de frente dessa batalha de séculos pela nossa existência. Precisamos olhar para dentro, a riqueza que temos no nosso país e não valorizamos. Se tem um elemento que pode construir narrativas baseadas nesses números, crimes, entreter e acima de tudo alertar à população de uma forma que todos consigam se identificar é a dramaturgia.

O gênero ativista é urgente dentro do audiovisual. Precisamos, acima de tudo, ter responsabilidades com as histórias que queremos contar e reações que desejamos gerar a partir dessas narrativas. Devemos rechaçar com veemência conteúdos que propagam racismo, classismo, machismo, xenofobismo e homofobia. Enquanto dermos o nosso tempo e nosso poder de compra para histórias que não representam o mundo que queremos, estamos ajudando a manter o status quo com suas ideias, suas versões da história, suas ideologias, seus preconceitos, sua noção de invencibilidade. Até quando vamos repetir e propagar o fato histórico de que o Brasil foi descoberto em não invadido em 1500?

Chegamos ao último episódio com alguma sensação de dever cumprido e com a certeza de que é apenas o começo. “Aruanas” atingiu números que nunca imaginávamos: milhões de telespectadores que mantiveram a média de audiência do início ao fim da série. Saber que, de alguma forma, levamos entretenimento e reflexões urgentes para as casas dessas pessoas no momento que mais precisamos repensar nosso ser cidadão, no nosso consumo, valores, comportamento e rotina, é de encher o peito de orgulho e trazer mais gás para continuarmos na tentativa de ajudar a mudar a nossa história, e quem sabe acompanhar e inspirar outros produtores a irem pelo mesmo caminho. E, assim, tornar o gênero ativista cada vez mais presente, comentado e capaz de transformar indivíduos, sociedades e o mundo, despertando o defensor da vida e do meio ambiente que vive dentro de cada um de nós.

*

Quem são eles:

Marcos Nisti e Estela Renner /Divulgação

  • Empreendedor social e produtor de cinema e TV, Marcos Nisti é CEO do Alana, organização de impacto social que compreende o Instituto Alana, a Alana Foundation e o AlanaLab. É sócio-fundador da Maria Farinha Filmes, que produziu obras como Muito Além do Peso, Tarja Branca e O Começo da Vida; da Flow, uma distribuidora cultural de impacto e da JungleBee, produtora de realidade aumentada e virtual. Co-criou projetos como Linha Azul, Projeto Terra, Criança e Consumo, Prioridade Absoluta, Videocamp, Believe.Earth, Alana Down Síndrome Center no MIT, entre outros. É autor e produtor da série Aruanas, uma co-produção da Maria Farinha com a Rede Globo, que atualmente está sendo exibida na emissora.

 

  • Diretora, roteirista e cofundadora da Maria Farinha Filmes, Estela Renner morou durante sete anos nos Estados Unidos, onde fez Mestrado em Motion Pictures. De volta ao Brasil, trabalhou escrevendo e dirigindo sitcoms e passou a se dedicar à promoção de causas sociais e ambientais por meio de obras audiovisuais. Estela escreveu e dirigiu alguns documentários que vocês devem conhecer, como “Muito Além do Peso”, “Criança: a Alma do Negócio” e “O Começo da Vida”. Cocriou a série “Jovens Inventores”, exibida no ‘Caldeirão do Huck’, e é autora e diretora geral de Aruanas, uma co-produção da Maria Farinha com a Rede Globo, que atualmente está sendo exibida na emissora.  

 

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Cristina Padiglione

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