Com narrativa infantil, ‘Gênesis’ obtém a melhor audiência de estreia na Record desde 2016
O SBT que abra o olho. A emissora de Silvio Santos, que aposta no filão infantil para suas novelas, ainda é forçada a manter o recesso de suas produções em razão da pandemia, em zelo a um elenco majoritariamente infantil. Mas a Record, ao trabalhar a narrativa bíblica da criação do mundo em sete dias, do anjo que virou Lúcifer e da serpente que persuadiu Eva a comer o fruto proibido, iniciou nesta terça-feira (19) uma tentadora concorrência às tramas do SBT.
Em seu primeiro capítulo, “Gênesis” teve a melhor estreia de uma novela da casa desde “A Terra Prometida” (2016). A prévia dos números indicou 15,7 pontos na Grande São Paulo. No Rio, o saldo foi de 15 pontos, mesmo patamar do PNT (Painel Nacional de TV), segundo dados da Kantar Ibope. O placar foi ainda maior em Salvador (18), Belém (18,1), Vitória (16) e Goiânia (20).
Antes de comer do fruto proibido, Adão tem o rosto barbeadíssimo, valeria até um merchandising de lâmina ou creme de barbear. Os cabelos são aparados, como têm de ser, segundo normas de bem, os cabelos dos meninos, e isso vale até para Lúcifer. Já Eva não conhece a tesoura, mas, aparentemente, traz as axilas limpinhas de pelos indesejáveis. Os dois têm olhos claros, o que seria de se presumir que toda a humanidade poderia ter olhos azuis ou verdes, veja a vantagem.
Mas Lúcifer, interpretado justamente por Igor Rikli, dono de belo par de olhos claros na vida real, lá está de lentes escuras pra representar o demônio, que alterna sua imagem entre uma figura careca, marcada por cicatrizes do fogo, e fios platinados (por um instante, pode ser confundido com o Supla).
O criacionismo tudo aceita, sem restrições a efeitos de computação gráfica que beiram a animação.
Quem se envergonha de clichês e estereótipos? Se Adão parece um modelo de passarela e os cabelos de Eva perdem a escova depois que ela peca, tudo faz parte de uma linguagem de fábula, capaz de alcançar o fascínio dos adultos de fé, de abalar o temor dos descrentes e de aguçar a crença das crianças, como se todos estivessem diante de uma aula de catecismo.
Nem as freirinhas de “Carinha de Anjo”, antiga novela do SBT, eram maniqueístas como a narrativa de “Gênesis”, onde Deus, não duvide, castiga quem o desobedece.
Enquanto obras clássicas são revisitadas com textos que procuram condenar a segregação (por gênero, raça ou xenofobia) de um mundo que não se percebia incivilizado, de outros tempos, a novela da Record, emissora pertencente a um grupo evangélico, corrobora ali o machismo que originou o mundo.
Adão culpa Eva por sua desgraça. Alcaguete, ele a entrega diante de Deus, alegando que foi “esta mulher” quem o fez pecar. E aperta o braço da companheira sem piedade para expressar seu desprezo por ela.
Narrativas bíblicas oferecem um zilhão de interpretações à conveniência de quem difunde aquela palavra do Senhor, invariavelmente um macho, dos apóstolos de Jesus ao bispo Edir Macedo. Onde está o olhar feminino desse conto?
E já que o criacionismo tudo aceita, custava aliviar para Eva? Custava que Adão fosse punido por tratar a companheira daquela forma?
É claro que não me manifesto como espectadora, convicta que sou de que a mulher acumula, injustamente, culpa milenar desde as fábulas da criação. A aflição, no caso, recai sobre a plateia de fiéis encantados com uma Bíblia ao pé da letra (masculina).
O risco de estrago é alto. Até porque o alcance de “Gênesis”, haja vista a linguagem infantil, promete ganhar grande proporção. Já dizia Nelson Rodrigues que o canastrão (e aqui estendo o termo à produção, de modo geral, um festival de canastrice) chega mais rápido ao coração da plateia. Em “Gênesis”, isso ainda vem embalado por cânticos religiosos de fazer a gente ajoelhar.