Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Brasil pode se tornar potência internacional controlando a propriedade intelectual de suas séries

Por GUSTAVO MELLO (*)

Após cinco anos de ataques diários ao setor cultural e da destruição das políticas públicas para o audiovisual, nos vemos diante do otimismo de um governo Lula que assumiu compromissos expressos com a democracia e com a cultura brasileira. Assistimos com emoção e entusiasmo à refundação do Ministério da Cultura, liderado pela ministra Margareth Menezes. Mesmo assim, o cenário que se apresenta é bastante desafiador.

É importante observar que a indústria do audiovisual já não é a mesma de 2017. Na verdade, essa indústria nunca passou por uma transformação tão acelerada e por mudanças tão profundas nos hábitos de consumo e na sua estrutura econômica como nos últimos 5 anos. A diminuição da base de assinantes de PayTV já se mostra irreversível, tendo perdido cerca de 1 milhão de pagantes em 2022.

A explosão do consumo de séries e filmes por streaming durante a pandemia de Covid-19 acelerou o lançamento de novas plataformas e o investimento em conteúdo original. A premissa de acionistas e executivos era de um forte e rápido crescimento da base de assinantes com uma promessa de lucros atrativos. Três anos depois do início da pandemia, os custos desse modelo se impuseram, obrigando as empresas a ajustarem seus planos de voo.

O mercado brasileiro volta a se encontrar presencialmente no Rio2C (evento que reúne profissionais do audiovisual de 11 a 16 de abril), vivenciando os impactos desses ajustes, com a clara percepção de que os necessários investimentos em conteúdo para 2023 foram racionalizados. As decisões das plataformas se tornaram mais estratégicas e conservadoras, focando na sustentabilidade de seus negócios no longo prazo.

Fragilizada pela ausência de uma política de Estado para o setor, a produção independente brasileira se encontra exposta às intempéries dos grandes centros de produção, sem conseguir estabelecer uma sólida e perene cadeia produtiva, diminuindo consideravelmente o potencial de geração de emprego. O que se revela um gigantesco paradoxo, já que nós –quando emplacamos um sucesso em conjunto com as plataformas– podemos entregar um enorme valor agregado aos players. Uma série como a sul-coreana “Round 6”, por exemplo, com orçamento de US$ 21 milhões e que se tornou hit mundial, gerou um retorno para a Netflix de quase US$ 1 bilhão.

As produtoras brasileiras que sobreviveram à pandemia de Covid-19, à explosão da inflação e ao governo Bolsonaro, concentraram seus negócios na prestação de serviços. Para atender ao aumento de demanda e aos padrões internacionais de produção foram feitos investimentos significativos na retenção de profissionais mais qualificados, em tecnologia, no treinamento de equipes, nas políticas de governança e ESG, compliance, processos e gestão.

Sem dúvida alguma, hoje o mercado de produção independente é mais profissional, porém mais custoso, dependente de poucos clientes e muito concentrado, aprofundando distorções regionais históricas. Ainda assim, junto a uma rede de talentos e técnicos qualificados, temos entregado séries com grandes resultados artísticos e de audiência.

Mas não queremos restringir nossa atuação à excelência dos nossos serviços. Temos experiência e competência para também controlarmos as propriedades em conjunto com coprodutores internacionais, assim como já é rotina para nossos colegas ingleses, coreanos, franceses, espanhóis e canadenses, só para citar alguns. Produtoras independentes que também controlam propriedades são sinônimo de um mercado interno maduro, de geração de emprego, de maior relevância e inserção internacional, de promoção cultural do Brasil no exterior, de construção de um novo imaginário do país ao redor do globo.

Num momento em que todo o mercado aguarda a regulamentação do streaming, a criação de um Condecine para SVOD e os próprios serviços têm se mostrado mais abertos a novos modelos de negócios, sugiro algumas ações que poderiam fomentar rapidamente as coproduções internacionais com retenção de IP no nosso mercado. São ações inspiradas nos desafios que vivenciei aqui na Boutique Filmes ao longo dos últimos anos:

Atualizar as regras da linha do FSA para SVOD/TV: o principal entrave tem sido a obrigatoriedade que o retorno para o Fundo seja prioritário antes de custear o ativo (a produção audiovisual). Ou seja, pelas regras atuais, uma fatia da pré-licença precisa retornar ao FSA antes que a própria exploração econômica da obra se inicie. A rotina na indústria é preservar a pré-licença em sua integridade para financiar o orçamento de produção, para depois se iniciar as recuperações prioritárias. Com este ajuste, a linha de SVOD/TV poderia entrar na rotina dos grandes acordos de coproduções internacionais para streaming (preservando, evidentemente, as importantes linhas regionais do Fundo). Grandes propriedades aumentam exponencialmente o potencial de retorno financeiro para o FSA, fortalecendo o próprio mecanismo. O que significaria para o FSA ser sócio do “Round 6” brasileiro?

2.

Inclusão dos contratos de pré-venda nas linhas de capital de giro do FSA e/ou do BNDES: para manutenção das propriedades, precisamos também de capital de giro, já que as licenças são pagas ao longo de anos. Atualmente, precisamos recorrer aos coprodutores internacionais com acesso a linhas de crédito mais baratas em seus países, o que enfraquece a posição do produtor independente brasileiro nas negociações.

3.

Atualizar o teto do artigo 3ªA da Lei do Audiovisual: esse importante incentivo fiscal está com valores defasados, o que tem tornado seu uso menos relevante para o fechamento de acordos internacionais e viabilização de estrutura financeira para retenção da propriedade intelectual.

4.

Criar um calendário fixo e unificado de fomento no Brasil: previsibilidade é o que mais tem atraído produtores internacionais na busca por parceiros ao redor do globo. Além disso, um calendário claro de desembolsos nos permite assumir compromissos contratuais com players e talentos above-the-line, planejar produção de temporadas subsequentes e obter datas de lançamentos favoráveis ao produto brasileiro frente à concorrência internacional nos catálogos das plataformas.

5.

Simplificação e Agilidade dos Aspectos Regulatórios: o arcabouço de regras da Ancine, desenhado num momento pré-streaming, tem sido um território muito difícil de navegar. Mesmo em acordos em que o poder do produtor brasileiro esteja preservado, compatibilizar o enquadramento do incentivo fiscal ou a emissão do CPB aos contratos se tornou desafiador. Os prazos extensos para emissão de Salic ou reconhecimento provisório de coprodução também se revelam entraves na rotina de negociações.

A essas medidas poderiam se somar ações afirmativas transversais, um sistema de pontos tanto na Lei do Audiovisual como no FSA que possibilitasse que as produções com políticas de diversidade e inclusão (dando mais peso de pontuação nos cargos de liderança) tivessem vantagem para acessar o teto do recurso público. As chamadas recentes do cash rebate de São Paulo já mostram que é possível implementar esse tipo de política pública de maneira simples e rápida.

 

Podemos pensar uma produção independente brasileira efetivamente inserida no mercado global, como player relevante, unindo força criativa e comercial, amparada por uma política de Estado que promova a potência e diversidade do nosso audiovisual mundo afora, transformando o setor numa verdadeira máquina de geração de empregos e renda. Seguimos com otimismo e resiliência, construindo em comunidade o audiovisual que nosso país merece.

(*) Sócio-fundador da Boutique Filmes. Produtor de “Rota 66”, “Negociador”, “Elize Matsunaga”, “PCC: Poder Secreto”, “Flordelis”, entre outras séries. Membro da International Academy of Teolevision Arts & Sciences

O produtor Gustavo Mello, sócio da Boutique Filmes
Foto: Marcus Leoni/Divulgação

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Cristina Padiglione

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