Desgastado, ‘Roda Viva’ ignora caso Marielle e discute economia
Raras são as vezes em que as capas das revistas “Veja” e “Carta Capital” defendem posições parecidas para um mesmo episódio, como acontece agora com as edições que estão nas bancas, sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). Jornais, telejornais, sites e redes sociais estão conectados ao assunto. Ainda que estejam longe de concordar em todos os pontos, e ainda bem que o mundo real tem lá suas divergências, o debate é essencial para o momento.
Nesse contexto, um programa da relevância de um “Roda Viva”, na TV Cultura, anuncia orgulhosamente para a próxima segunda-feira, dia 19, uma edição temática sobre… os rumos da economia. Isso é o que se pode chamar de timing perfeito para o jornalismo.
A essa altura, nem se pode culpar o atual âncora, Augusto Nunes, pela fragilidade que tem acometido o “Roda Viva”, programa criado em 1986, no início do processo de redemocratização do país, o que deveria dizer muito sobre seu DNA.
Não é de hoje que o programa sofre intervenções da direção da emissora – a própria saída do apresentador anterior, Mario Sergio Conti, já na gestão de Marcos Mendonça à frente da Fundação Padre Anchieta (FPA), foi motivada por uma queda de braço entre âncora e presidência, no que diz respeito à autonomia do jornalista para escolher os entrevistados da roda.
Veio então, ainda em 2013, Augusto Nunes, que já havia ocupado o posto entre 1987 e 89, à época em perfeita sintonia com os anseios da atual administração. Mas faz tempo que a lua de mel se esgotou e entrou ruído no diálogo entre ele e a direção da TV Cultura, o que se estende da presidência a membros do Conselho da FPA.
Mais uma vez, intervenções à revelia do apresentador têm ocorrido com frequência. Este mês, o ministro da Educação, Mendonça Filho, esteve no programa pela segunda vez em menos de dois anos – ele já havia ocupado o centro da roda em outubro de 2016. Em agosto passado, Márcio França, vice-governador do Estado de São Paulo, cujos cofres são essenciais para o funcionamento da TV Cultura, esteve no centro da “Roda”. De lá para cá, mais dois ministros do governo Michel Temer (Sérgio Sá Leitão, da Cultura, e Fernando Coelho Filho, de Minas e Energia) ocuparam o centro do cenário, que tem sido, mais do que nunca, alvo de edições temáticas sem entrevistados, como esta que virá na segunda-feira.
Faltam personalidades para uma entrevista relevante por semana?
Políticos e pensadores alinhados com a política do governo do Estado se revezam, ultimamente, com cientistas políticos, artistas e economistas. Faltam vozes dissonantes, falta debate, falta a divergência saudável e civilizada que por muito tempo fez do “Roda Viva” uma referência para o repertório nacional.
De certa forma, o “Roda Viva” sempre serviu aos interesses de quem abastece o caixa da emissora – no caso, o governo do Estado de São Paulo. Ex-presidente da FPA, na melhor gestão já cumprida naquela casa, Roberto Muylaert disse uma vez que até reunião de pauta chegou a testemunhar no Palácio dos Bandeirantes. Mas nunca esteve tão reduzido, como acontece atualmente, o revezamento com correntes partidárias distintas daquelas defendidas pelo mandante do Palácio dos Bandeirantes.
De tantas escolhas alheias acatadas nos últimos meses, Nunes só pediu ao presidente Marcos Mendonça que lhe desse a chance de escolher seu último entrevistado, e foi então que acertou diretamente com o juiz Sérgio Moro sua presença para o dia 26, última edição apresentada por ele. A informação, antecipada pelo TelePadi no dia 9, foi alvo de uma despedida simpática que Nunes fez por meio de seu blog, na “Veja” Não que Moro seja uma voz dissonante do time que tem frequentado o cenário, mas é incontestável que se trate de uma figura da maior relevância para os rumos em andamento no país, além de ser um entrevistado inédito.
Desgastado pela pauta de interesses unilaterais, o “Roda” deixa de ser inclusive para a Cultura um palco de valor referencial, como já foi um dia. É uma pena que aquele cenário genial, de uma simplicidade absoluta para a eficiência máxima de grandes sabatinas, esteja tão mal aproveitado.
Ainda que o assunto Segurança tenha sido o alvo do programa há 15 dias, o caso Marielle seria um bom motivo para jogar holofotes sobre o lado mais fraco dessa guerra, justamente o pessoal que, por pura falta de opção, está na linha de tiro das balas perdidas entre polícia e bandido. Foi exatamente esse olhar que faltou na bancada da edição sobre Segurança, composta por muitas Edison Brandão, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo; José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Polícia Militar e ex-secretário Nacional de Segurança; Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Bope-RJ e roteirista do filme Tropa de Elite; e Flávio Werneck, presidente do Sindicato dos Policiais Federais no Distrito Federal. Vá lá, havia Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, mas a visão da universidade não é a mesmo de alguém de uma Cufa (Central Única das Favelas), por exemplo, que convive com aquela vida real todos os dias.
Faz três semanas que o TelePadi tenta ouvir Mendonça sobre o que teria motivado a saída de Nunes e quem virá para a vaga dele, mas não houve resposta alguma a este noticiário, nem da assessoria de imprensa, que sequer respondeu aos e-mails solicitados para formalizar o pedido, nem da secretária de seu gabinete na TV Cultura.
Nos corredores da emissora, há rumores de que Mendonça pode abandonar a gestão nas mãos da vice-presidência, cargo criado recentemente, para se candidatar a deputado pelo PSDB, partido ao qual é filiado, o que a assessoria de imprensa da emissora desmente.
Em tempo: a bancada do “Roda Viva” que discutirá economia, nesta segunda, é composta por Maílson da Nóbrega, economista e ex-ministro da Fazenda; Roberto Giannetti da Fonseca, economista e empresário; Luiz Felipe de Alencastro, professor de História Econômica da FGV-SP e professor emérito da Universidade Paris-Sorbonne; Ana Carla Abrão Costa, economista; e José Mendonça de Barros, economista.