Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Diretor de ‘3%’, a 1ª série brasileira da Netflix, César Charlone contesta complexo de vira-lata

Já que nós nunca estaremos em pé de igualdade de condições para competir com a infra-estrutura dos americanos na indústria do audiovisual, vamos investir na força de nossos talentos e na criatividade. Esse foi o mantra martelado por Cesar Charlone, diretor de “3%”, primeira série da Netflix produzida no Brasil, junto à equipe e elenco do título, da pré-produção à edição, passando pelo set comandado por ele. Os 8 episódios estarão disponíveis a partir de 25 de novembro.

“Isso foi uma coisa que eu bati muito”, disse Charlone a um pequeno grupo de jornalistas que visitou o set de gravações da série, em março. “Claro que eu vi ‘Hunger Games’ (‘Jogos Vorazes’, franquia que pode servir como paralelo de ‘3%’, embora não tenha inspirado a série brasileira, segundo seu criador, Pedro Aguilera). Meu argumento com eles é: ‘a gente nunca vai competir com eles em investimento, então temos que investir mais na gente”, concluiu o diretor.

Nascido no Uruguai e radicado no Brasil, Charlone acumula os créditos de indicado ao Oscar pela Fotografia do filme “Cidade de Deus”, e tem um troféu BAFTA pela Fotografia de “O Jardineiro Fiel”, ambos filmes de Fernando Meirelles. “Uma coisa que me frustra muito a cada vez que volto ao Brasil, de uma viagem ao exterior, é ver que sempre vai ter alguém pra dizer, quando uma escada rolante quebra, que aqui nada funciona, que isso só podia mesmo ser no Brasil, esse complexo de vira-lata… Ontem, por exemplo, ouvi de dois caras que ‘o Neymar nunca vai ser como o Messi’. Imagina?”.

Charlone está contente em assinar a direção da primeira série da Netflix no Brasil. Trouxe muitos elementos de brasilidade à produção, atesta Tiago Mello, produtor da série. “Quando o Tiago me procurou, meu coração fez tum tum tum, já” (risos). Bastante requisitado para direção de filmes e outras cenas, Charlone conta que tem sido muito resistente e recusa várias propostas. “É o que eu falo: se você tem uma certa idade, filmar é sacrificado. São 12 horas por dia, muito tempo em pé, e quando você está na 15ª diária e o despertador toca às 5h da manhã, tem que estar muito motivado. Porque se for pra pagar as contas, a publicidade paga muito melhor. Fazer a primeira série brasileira pra Netflix é muito legal.”

A SÉRIE

A meritocracia é o mote central do argumento, criado há mais de três anos como uma websérie que teve milhares de visualizações no YouTube e ganhou legendas em inglês por fãs daquela modesta produção. Num mundo distópico, o Continente, lugar decadente, miserável e corrupto onde a maioria da população sobrevive dia após dia, há uma única chance de melhorar de vida: enfrentar o Processo e se colocar entre os 3% de candidatos que vencerão uma gincana desumana para chegar a Maralto, espécie de terra prometida. Lá, sim, há promessa de vida mais digna, ou assim dizem.

Alusão à segregação da vida real, “3%” foi adquirida há dois anos por Tiago Mello, sócio-proprietário da Boutique Filmes, realizadora da série. Dali em diante, o projeto tomou outro rumo e foi de encontro aos interesses da Netflix, que queria produzir algo no Brasil. Tiago e Pedro Aguilera, que assina o roteiro final, fazem questão de frisar que aquela websérie que deu origem à série atual mal pode ser tratada como um piloto, tamanhas foram as mudanças operadas ao longo dessa trajetória. O aspecto policial, por exemplo, que dá a ideia de prisão ao ambiente do Processo, desapareceu. O cinza deu lugar a cores múltiplas. Uma leve pitada de ironia e algum romance também foram trazidos ao roteiro, de lá para cá.

Mais que isso: a presença da Netflix e de um orçamento mais robusto trouxeram para o elenco grifes como João Miguel e Bianca Comparato, além de Mel Franckowiak. O cast se estende a Rodolfo Valente, Michel Gomes, Rafael Lozano, Vaneza Oliveira e Viviane Porto, com centenas de figurantes. A direção conta ainda com Jotagá Crema, Dani Libardi e Daina Giannecchini.

Pedro Aguilera, de 38 anos, lembra que não chegou a ver “Jogos Vorazes” quando começou a pensar em “3%”. “Esse conceito da meritocracia, agora muito presente, foi se reforçando conforme fomos ganhando mais maturidade. Lá atrás, a gente estava vendo mais como ponto de vista do jovem, que era como eu encarava as barreiras de processo, principalmente cultural.”

“Todo mundo passa por mil processos, no caso, a gente estava mais focado sobre mercado de trabalho”, diz, quando começou a criar o argumento. “Mas antes teve vestibular. Tem um monte de coisinhas simples, como carteira de motorista, e coisas gigantes, como as barreiras da sociedade. Não necessariamente com essas loucuras de 2016”, reconhece.

Mas, até em função do atual momento conturbado que se vive, no Brasil e no mundo, a meritocracia é um tema muito presente. “A gente tem mais ferramentas para falar sobre isso agora, e não é algo que vá se resolver amanhã, o que torna a série bastante relevante por muito tempo, como uma utopia.”

Charlone vai além: “A gente se inspirou muito no que é, de fato, não o futuro, mas o presente.” O tom documental marca o estilo adotado pelo diretor. O que poderiam ser meros ensaios do elenco, antes do “valendo!” das câmeras, foram registrados, dando à edição um farto material de cenas espontâneas para a montagem final. “A gente deixa os atores livres de marcas e documenta essas imagens. Trabalhamos muito com preparador de elenco. E dificilmente repetimos o mesmo plano. Se não gostamos da interpretação do ator em determinado momento, preferimos gravar de outro ângulo”.

Diretor mais experiente no cinema, Charlone diz que está se deliciando com o formato de série, pela chance de contar uma história de modo mais demorado, explorando todas as suas possibilidades. Sobre o formato de vídeo por demanda que disponibiliza todos os episódios de uma só vez, à moda Netflix, tem uma definição precisa: “Eu digo que se parece com um livro. você vai até a página 40, fecha e continua amanhã.” Embora já tenha feito algumas incursões nesse campo  esteve em “Cidade dos Homens”, para a Globo, e “Destino São Paulo”, para a HBO, ambas da O2 Filmes. Agora, tem outra vantagem: a flexibilidade para o tamanho de cada episódio. Como eles não vão ao ar em uma grade de programação de canal linear, que exige cronometragem mais rígida no tamanho de cada capítulo, a equipe pode se estender ou não, em dois ou três minutos, de acordo com as necessidades de cada script.

“A gente não está bem no cinema brasileiro. A relação com público, bilheteria, não vai bem. Então, as séries, e essa lei da TV paga, deu um fôlego muito legal para o mercado. Eu vejo a maioria dos meus colegas migrando para esse mercado, que tem uma relação mais direta com o público. Nos últimos anos, as coisas mais impactantes foram na TV, como ‘Breaking Bad’ e ‘House of Cards’.”

Confira os trailers de “3%”

 

 

 

 

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Cristina Padiglione

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