Documentário sobre prisão de Caetano é selecionado para o Festival de Veneza
Live do Caetano Veloso talvez não role mesmo, mas documentário sobre ele, pode apostar que sim.
Dupla que estreou na seara de documentários com o ótimo “Uma noite em 67” (disponível no Canal Brasil Play), sobre o lendário Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, Ricardo Calil e Renato Terra emplacaram nesta terça-feira (28) o seu novo documentário na seleção do 77º Festival de cinema de Veneza, que acontecerá de 2 a 12 de setembro próximo. “Narciso em Férias” (“Narcissus off Duty”) estará, portanto, no primeiro festival em formato presencial desde o início da pandemia de Covid-19. O filme participa da seção oficial Out of Competition.
Focado na prisão de Caetano Veloso em 27 de dezembro de 1968, 14 dias após o decreto do AI-5, o documentário tem produção de Paula Lavigne e é uma realização da Uns Produções, coproduzido pela VideoFilmes, de Walter Salles e João Moreira Salles.
No longa, Caetano Veloso relembra sua prisão na Ditadura Militar, quando ele e Gilberto Gil foram retirados de suas casas em São Paulo por agentes à paisana. Sem receber explicações do regime, foram levados ao Rio de Janeiro, deixados em duas solitárias por uma semana e depois transferidos para celas. A censura prévia impediu os jornais de divulgarem suas prisões.
O relato de Caetano sobre aqueles dias chega 52 anos depois, quando o músico relata às câmeras do documentário o período mais duro de sua vida, refletindo sobre os 54 dias que passou encarcerado.
O título “Narciso em Férias“, que também dá nome ao capítulo sobre a prisão de Caetano em seu livro “Verdade Tropical“, vem do romance “Este Lado do Paraíso”, do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald. Ele se refere ao fato de Caetano ter passado quase dois meses sem se olhar no espelho.
Foi na prisão que o compositor recebeu de Dedé, então sua mulher, um exemplar da revista Manchete com fotos inéditas da Terra vista do espaço, o que inspirou a composição da música “Terra” dez anos depois.
No cárcere, Caetano compôs “Irene”, lembrando a risada de sua irmã caçula.
Dos dias na solitária, Caetano lembra: “Eu tinha que comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido. Me lembro muito de uma frase que o Rogério Duarte me disse logo que eu fui solto: ‘Quando a gente é preso, é preso para sempre’. Acho que é assim mesmo”, afirma Caetano no documentário.
“A beleza deste filme está na maneira como Caetano Veloso, o artista em questão, hoje com 77 anos, é capaz de nos levar de volta àquela cela e nos fazer partilhar da impotência do rapaz preso. A simplicidade da encenação -um homem sentado de pernas cruzadas diante de uma parede de concreto, nada mais– dá voz ao essencial, uma escolha ao mesmo tempo estética e moral. Diante da violência, qualquer excesso seria injustificado. Este é um filme sobre o Brasil de antes e talvez de amanhã. Os fantasmas continuam entre nós”, analisa o coprodutor João Moreira Salles.
“Estrear o filme em Veneza é um sonho. Duas pessoas tiveram papel fundamental nesse processo: João Moreira Salles e Paula Lavigne. Conheci o João há 12 anos e, por causa dele, convivi com Eduardo Coutinho. Cada decisão que tomei no projeto veio desse aprendizado com João e Coutinho. A Paula teve a iniciativa do filme e, desde o convite, apoiou todas as decisões que tomei, confiou, me deu confiança. ‘Narciso em Férias’ respeita e amplifica cada palavra, memória, gesto, silêncio de Caetano. Agora, queremos mostrar isso para o mundo“, afirma o diretor e roteirista Renato Terra.
“Estamos felizes e honrados de iniciar a trajetória do filme pelo Festival de Veneza, que é ao mesmo tempo o primeiro festival de cinema do mundo e o primeiro que será presencial no mundo pós-pandemia. É um evento histórico que pode apontar como será o cinema nessa nova realidade. Para nós, faz todo sentido que a estreia seja lá. ‘Narciso em Férias’ é um filme que fala do passado do Brasil, por meio das memórias de Caetano Veloso sobre sua prisão na ditadura, mas também tem muito a dizer sobre o presente do país”, explica o diretor e roteirista Ricardo Calil.