Equipe de Bial produz documentário sobre atrocidades de João de Deus
Responsável pela revelação de que o mais famoso médium brasileiro é um abusador contumaz de mulheres e acumula histórico de riqueza e violência, a equipe do Conversa com Bial produziu “Em Nome de Deus”, um documentário de seis episódios para o GloboPlay, com estreia marcada para o dia 23.
Tive acesso a dois episódios e, apesar das atrocidades que ali se revelam, o interesse por conhecer todas aquelas histórias é latente. Como disseram Pedro Bial e o documentarista Ricardo Calil em entrevista por videoconferência, a “delicadeza” teve de se impor, inclusive porque os relatos são suficientemente fortes.
É provável que nenhum roteirista teria imaginação para criar um personagem como João Teixeira de Faria, o João de Deus, apresentado como alguém que prometia cura para os males mais indecifráveis pela medicina. Corta. Depois de décadas, o sujeito se revela tudo aquilo que conhecemos em 2018.
Os fatos vieram à tona a partir de uma tentativa de entrevistá-lo no Conversa com Bial. O médium disse que iria ao programa, desde que Bial fosse até Abadiânia, em Goiás, para conhecer a Casa de Inácio, local onde ele recebia milhares de pessoas diariamente, em busca de cura.
“Quando ele disse que não pedia dinheiro, só pedia fé, eu desisti de ir, porque eu não tinha fé naquilo”. Mas não valia ir até lá na condição de repórter ou simples curiosidade jornalística? Sim, ele admite. Mas não queria que João transformasse sua presença lá em mais um cartaz de celebridade a endossar seu exercício.
Foi então que a equipe do programa acabou conhecendo algumas suspeitas de que o homem tratado como líder espiritual colecionava episódios de abuso sexual. Como aquele era um lugar em que as pessoas iam quase como último recurso, frágeis e quase sempre em estado de desespero, o que já parece algo terrível ganha contornos ainda mais dolorosos.
Roteirista do programa, Camila Appel tinha uma amiga que havia trabalhado na Casa de Inácio. Foi ela quem lhe revelou que havia escutado histórias sobre abuso sexual cometidos pelo sujeito. Camila partiu em busca de mulheres dispostas a contar suas histórias, mas não foi fácil convencê-las a falar. Como toda vítima de abuso, tinham vergonha. E como toda vítima de abuso diante de um mito, pior, temiam sofrer nova humilhação, sob o risco de ninguém lhes dar crédito.
Só Zahira, uma holandesa que foi a Abadiânia em busca de cura para um trauma sexual, concordou em falar por Skype para o Conversa com Bial na época.
Da desistência de Bial à exibição da entrevista, passaram-se de três a quatro meses, com dedicação intensiva de Camila. João tentou emplacar uma liminar para impedir a exibição daquela edição, mas a Justiça negou, alegando que isso configuraria censura. A partir da denúncia de Zahira, outras mulheres começaram a surgir e a falar. E até hoje, conta Camila, aparecem mulheres relatando histórias de horror.
O documentário reúne algumas delas pela primeira vez em um encontro de arrepiar, que inclui a própria filha de João, Dalva, abusada por ele desde os 10 anos de idade.
“Elas não se conheciam e a gente fez de tudo para elas não se encontrarem antes [da gravação]. Foi uma logística de hotéis separados para que elas se encontrassem só na roda [promovida dentro do estúdio, entre elas]. Mesmo tendo tido coragem de contar, cada uma tem a sua história, mas quando uma começou a ouvir a outra, foi tão incrível, porque tinha um padrão: quando uma fala, a outra reconhece a conexão com sua própria história. Para nós, que estávamos de fora, filmando, foi incrível”, relata a diretora do Conversa com Bial, Mônica Almeida.
Bial ainda tem esperança de entrevistar João, com quem conversou há poucos dias, já durante a quarentena, por videoconferência. “Ele disse: ‘eu vou falar, e vou falar primeiro pra você’. Vamos ver.”
Ao rever o episódio que puxou todo o histórico que levou João à prisão, Bial se emocionou de novo e conta ter até chorado.
“Eu fiquei muito orgulhosa no dia 7, quando o programa foi ao ar, que dia foi aquele!”, celebra Camila, que se diz transformada como pessoa e profissional após a apuração que desvendou o falso médium.
Para Bial, se não tivesse ocorrido o movimento MeToo alguns anos antes, nos Estados Unidos, talvez nada disso fosse possível. Assim como no caso do médico Roger Abdelmassih, é preciso que uma das vítimas venha primeiro a público para encorajar outras mulheres. Outras mulheres tentaram denunciá-lo antes, contou Camila, mas foram desacreditadas em razão do poder representado por ele.
Jornalista especializado em espiritismo, Marcelo Souto Maior dá um importante depoimento no documentário, ao relatar que João de Deus era cercado de proteção por políticos de Goiás. Daí o fato de Bial associar as raízes da saga deste homem ao coronelismo.
Segundo documentário original do Globoplay, “Em Nome de Deus” supera em larga distância a produção sobre Marielle Franco, que peca pela finalização, em ritmo pouco atraente. Coprodutor do título, o Canal Brasil exibirá os seis episódios da nova produção a partir de quarta-feira (24), às 20h50.