Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Especial de Natal do Porta dos Fundos é provocador, como convém ao humor

Inversão de valores: a Última Ceia, episódio que precede a morte de Cristo, vira especial de Natal nas mãos do Porta dos Fundos. Crédito: Divulgação

Primeiro especial de Natal do Porta dos Fundos na Netflix, “Se Beber, não ceie” é de uma provocação gigantesca não só a religiosos mais fervorosos, mas a qualquer crente em Deus temeroso de questionar valores cristãos. Talvez a própria Netflix esteja entre esses, já que a produção está escondida nas profundezes da plataforma: lançado no último dia 21, o título não aparece entre as novidades da primeira página do serviço, a chamada “home”. É preciso buscar pelo nome “Porta dos Fundos” e descobrir o título em inglês – “The Last Hangover” – para clicar no ícone e assistir ao programa.

A Netflix adora dizer que aposta alto no Brasil e produz aqui não sei quantas séries, mas na hora de promover dois lançamentos no mesmo dia, prefere apostar mesmo é no gringo “Bird Box”, com Sandra Bullock, e esconder o Jesus do mal, encarnado pelo Fábio Porchat. Pena.

Ao fechar acordo com o coletivo de humor, a Netflix deveria saber o que eles fizeram nos natais passados. O Jesus de Porchat nunca foi lá muito católico, pelo contrário. Era mimado, controverso, mas não chegava ao nível do atual filho de José, o carpinteiro, capaz de castigar quem o contrarie e de proferir frases como “Você sabe com quem está falando?” a soldados romanos que invadem a taverna onde ele promove a festinha da Santa Ceia com seus 12 apóstolos, Maria Madalena e suas amigas, regada a drogas lícitas e ilícitas.

O grupo bebe, e bebe com sabedoria, na fonte do humor inglês do Monty Phyton. Mas se antes o simples fato de mexer nas sagradas linhas bíblicas incomodava a militância cristã, agora é preciso elevar o tom para tirar o espectador da sua zona de conforto. “Se Beber Não Ceie” incomoda, faz rir, choca e faz rir mais ainda. Faz crer que o humor tudo pode, e que ninguém vai contestar as crenças de ninguém porque histórias milenares de fé foram recriadas sob a liberdade de fazer rir.

É impossível, no entanto, não causar no espectador uma ponta de dúvida: será mesmo que a história toda aconteceu como foi contada nas sagradas escrituras? Será mesmo que Judas era o traidor e levou essa fama com justiça? Será mesmo que os outros apóstolos agiram corretamente? Será mesmo que Jesus sempre dava a outra face quando apanhava?

Não estamos falando, naturalmente, da história de Cristo, apenas. Isso é só um pretexto para fazer a massa questionar verdades que pareçam incontestes. Neste exato momento, estamos vendo a destruição da até então inabalável fama de bondade de um médium curandeiro de fama mundial por trás de quem se escondia um ser abjeto, abusador de mulheres que se encontravam em momentos de alta fragilidade, explorador de pessoas nos seus instantes mais dramáticos, um diabo que carregava o nome de Deus no cartão de visitas, dito “João de Deus”.

“Se Beber não Ceie” nem tem a pretensão de despertar na plateia toda essa carga de reflexão que descarrego aqui, é um filme feito para rir mesmo, daí o potencial de seu efeito sobre o que pode provocar. O pensamento sobre o roteiro são outros quinhentos, fruto desse incômodo que pode atingir os mais convictos de sua fé e suas verdades, e por isso de um conteúdo tão útil ao que se chama de humor.

O espectador pode suspeitar de cara que o enredo promove uma inversão de valores, a partir do próprio episódio aqui parodiado: a última ceia, afinal, precede a morte de Cristo, e não seu nascimento, mote do Natal.

A produção é boa, bem acabada, digna de um filme de qualidade, com cuidado superior aos vídeos do grupo na internet – que já são de um nível bem acima da média encontrada no YouTube. Em tons pastel, o especial reforça a estética que mais se identifica com imagens bíblicas, da iluminação aos figurinos, com câmeras trilhando takes bem planejados, sem cair na tentação do lugar comum.

Vale ver, vale pensar, mas, sobretudo, vale rir.

Só falta a Netflix perceber que tem um bom produto em mãos e perder a vergonha de oferecer o título com mais ênfase.

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Cristina Padiglione

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