Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Espelho’ celebra 15 anos sendo voz de ‘pautas que incomodam’: fala, Lázaro

Lázaro Ramos no cenário do especial de 15 anos do Espelho. Foto: Celino Vitorio/Divulgação

Racismo, segurança pública, literatura, política, saúde, religião e humor são temas eleitos por Lázaro Ramos para uma edição especial do “Espelho” para o Canal Brasil, promovendo um balanço de 2020. Programado para esta segunda-feira (28), às 21h30, o título vale, sobretudo, como uma celebração aos 15 anos do “Espelho”, que já se ocupava de abordagens sobre racismo e antirracismo muito antes de isso ganhar o protagonismo que alcançou neste ano que termina.

Em conversa com o blog, Lázaro resumiu bem o critério que norteia o programa, por meio das entrevistas que ele e a equipe elegem a cada temporada. Ali estão invariavelmente, personalidades capazes de abordar “pautas que incomodam”, dentro do espectro de assuntos em voga a cada temporada. Mas o maior mérito é levantar a bola de cada tema sem restringir a conversa às bolhas que já se interessam por aquilo.

“É uma pauta incômoda: segurança pública e racismo são pautas incômodas, que a gente aborda com mais artifícios de entretenimento para que mais pessoas participem desse debate”, diz. “A gente precisa escutá-los, precisa falar de humor com uma mulher negra gordinha”, fala, citando sua conversa com a humorista Thamyris Borsan,  que se diverte ao reverter em piadas os cacoetes do racismo estrutural.

A edição especial resume os temas mais caros do ano, sem tropeçar no lugar comum. A abordagem sobre segurança pública, por exemplo, fica a cargo de Alexandre Felix Campos, policial que se anuncia como antifascista e prega a desmilitarização da polícia. Mas seu discurso não seria “uma utopia?”, pergunta-lhe Lázaro. E ele, negro, citando estatísticas de sua cor entre policiais e vítimas de violência, conclui que sua sobrevivência já é resultado de utopias.

O professor e advogado Silvio Almeida abre o programa, falando sobre racismo, exclusão e desigualdade, enquanto Fernanda Felizberto, escritora, ativista, professora e doutora em literatura, enumera a relevância do ano para lançamentos do mercado editorial com foco nos negros.

Fechando o programa, tem Thelma Assis, a Thelminha, vencedora do BBB 20, médica, negra, que ajudou a pautar a edição do reality show do ano com reflexões sobre racismo e feminismo.

Quando pergunto a Lázaro o que teria motivado a intensificação da discussão sobre racismo em 2020 mesmo antes do assassinato de George Floyd por um policial nos Estados Unidos, ele responde que “ao longo dos últimos anos [o racismo] foi muito falado no círculo das militâncias, uma juventude que se tornou influencer, e adultos que não falavam nesse assunto passaram a ter isso como pauta comum”.

Como referência às iniciativas anteriores a este ano, cita dona Diva Guimarães, professora que levantou uma plateia lotada na Flip (Feira Literária de Paraty) em 2017, fazendo Lázaro chorar, com um discurso sobre seus antepassados escravizados. Diva esteve ainda entre as entrevistas selecionadas pelo “Espelho” na temporada seguinte, em 2018.

“Acho que quando chega a pandemia, mais gente estava em casa observando algumas coisas que antes não parava para ver, para pensar”, arrisca Lázaro, em um diagnóstico intuitivo. “Muita gente já estava falando nisso, a pandemia fez com que o assunto ganhasse um empurrãozinho.”

“Os casos de João Pedro, no Brasil, e Floyd, nos Estados Unidos, fizeram com que mais gente prestasse atenção, e a pandemia acabou trazendo para a pauta a famosa pandemia da desigualdade. Se a gente for falar do universo mais pop, o BBB teve discussão de racismo, de feminismo, e a gente estava discutindo isso, acho que isso impulsiona o debate”, reforça.

Ao falar de religião na edição especial deste “Espelho”, Lázaro ouve o pastor evangélico e teólogo Ronilson Pacheco, que nos apresenta uma leitura muito distante da imagem consolidada pelos líderes evangélicos que impõem seus discursos pela TV. Ouve ainda a Yalorixá e mestre em Cultura e Sociedade Nívea Santana, e temos então dois líderes religiosos que se respeitam em suas diferenças, traçando, em comum, esperanças para o ano que vem aí.

Tem ainda a sábia Margareth Dalcomo, pneumologista, que fala sobre a pandemia em si, o que esperar das vacinas e, principalmente, o que não esperar: ela adverte que 2021 não será ainda uma volta ao normal: ainda há muito a fazer em precaução à Covid.

O programa nos brinda ainda com um entrevistado internacional que ama o Brasil e se sente amado por seu público, prevendo que logo logo gostaria de estar por aqui para realizar algum projeto, quem sabe até com o próprio Lázaro Ramos. É o ator Terry Crews, do seriado “Todo Mundo Odeia o Chris” e do filme “Branquelas”. Foi ele quem procurou Lázaro para falar de um velho livro cujas ilustrações são de sua autoria e foram refeitas recentemente para um relançamento, agora contemplando a identidade negra.

A política, tema que esteve mais presente do que nunca neste ano, permeando todos os demais assuntos, entra em foco pela entrevista com a jornalista e roteirista Carol Pires, que lançou a série em podcast “Retrato Narrado”, documentário que detalha a trajetória de Jair Bolsonaro. Lázaro lhe pergunta se falta algum episódio que ela acrescentaria à série, e ela diz que o ideal seria narrar a saída de Bolsonaro do carg.

No ano passado, quando começou a pensar na temporada que comemoraria os 15 anos do “Espelho”, Lázaro sonhou em fazer uma safra de entrevistas internacionais. A pandemia foi adiando seus planos até outubro, quando se deu conta de que só poderia honrar um material inédito por meio de videoconferências, formato adotado aqui em todas as conversas.

Mas foi em razão desse projeto original que a equipe pediu, há mais de cinco meses, uma conversa com o campeão de Fórmula 1 Lewis Hamilton, feito que Lázaro conseguiu pouco depois de ele vencer a temporada deste ano e virar uma figura ainda mais requisitada para entrevistas. Àquela altura, já considerando a proposta do programa e o histórico de Lázaro, o piloto, célebre ativista antirracista, decidiu que falaria ao “Espelho” e dispensou outros pedidos de entrevista. A conversa foi antecipada em outra edição do programa e teve trechos exibida no Fantástico, da Globo.

Lázaro acha que conseguiu sintetizar nesta edição um balanço do ano, mas, se fosse possível, teria se estendido para outros assuntos. Faltou falar em educação, por exemplo, um tema muito discutido em 2020 e que reforçou os contrastes sobre as desigualdades, ao expor o apagão cibernético que impediu tantas crianças e adolescentes de terem acesso ao ensino remoto, como foi necessário.

Sempre falta falar de mais alguma coisa, e é por isso que  o programa se mostra inesgotável. “Há uns cinco anos, eu cheguei a propor ao Canal Brasil que nós acabássemos com o ‘Espelho’ e fizéssemos outro programa, mas eles me convenceram a manter o ‘Espelho’, que é uma voz necessária, com esse jeito de a gente entrevistar e falar sobre o que é preciso falar.”

Cada temporada soma 26 edições, e o Canal Brasil tem brindado o público com a liberação de edições de até um ano atrás no seu canal pelo YouTube, o que tem levado muita gente a conhecer entrevistas antes restritas aos assinantes. “Muita gente tem vindo falar no Twitter sobre esses programas que eu nem sabia que estavam abertos no YouTube, como a entrevista que eu fiz com o Paulo Vieira e outras tantas.”

Ao mesmo tempo em que está há 15 anos no ar, o “Espelho” não está parado. Vai se transformando e ajudando a transformar ideias por meio de seus entrevistados e de um material permanentemente vivo, daí em constante mutação, de acordo com o que está acontecendo no mundo ao redor.

A equipe e o apresentador também praticam bem o exercício de encontrar figuras que acrescentem ao debate, mesmo de assuntos aparentemente tão discutidos, como vemos nesta edição especial, especialmente nas entrevistas sobre segurança pública e religião.

“Isso é tudo fruto de pesquisa. Principalmente neste ano, muitas denúncias aconteceram, muita insatisfação foi jogada nas redes sociais, a gente tem que oferecer uma luz e falar de um ponto de vista que a gente ainda não falou, até porque a gente já discutiu muito sobre esses assuntos ao longo desses 15 anos.”

Lázaro queria ainda ter falado de cinema e seriados, TV e TV sob demanda, outra fonte de alimento que foi fartamente percebida durante a quarentena, e conta que teria de fazer um programa extra só para falar de seriados, de tanta coisa a que assistiu, como “This is Us”, ou reviu, como “The Office”.

Ah, sim, importante: a edição especial deste “Espelho” se encerra ao som de “AmarElo”, o sample de Emicida sobre “Sujeito de Sorte”, de Belchior. Por quê? “Porque só poderia ser esta música. Essa música é a música que não sai da nossa playlist porque é a música de que a gente precisa, eu queria que fosse uma injeção de força, de ânimo para o ano que vem.”

É isso: ano passado eu morri, mas este ano eu não morro.

Abaixo, a conversa com Paulo Vieira, publicada recentemente pelo YouTube, mas gravada ainda no ano passado, e o encontro com Emicida, da safra mais antiga, endossando que essa pauta faz parte do “Espelho” desde sempre.

 

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Cristina Padiglione

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