Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Série sobre Rondon e Roosevelt é oportuna para resgatar orgulho perdido

Chico Diaz como Cândido Rondon em expedição com Roosevelt / Divulgação

A HBO põe no ar neste domingo (26), às 23h, o primeiro dos quatro episódios da minissérie “O Hóspede Americano”, dirigida por Bruno Barreto. Falada em inglês e português, a produção vem sendo realizada há cerca de quatro anos e resultou em uma obra com ritmo de cinema.

A narrativa dispensa a clipagem televisiva contemporânea e respeita o tempo dos acontecimentos ali retratados a partir do encontro entre o ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, vivido pelo ator americano Aidan Quinn, e Cândido Rondon, interpretado por Chico Diaz, em uma expedição pela região amazônica, entre 1913 e 1914.

Militar que atuou na integração do oeste e norte do Brasil e na defesa dos povos indígenas, o marechal Rondon (1865-1958) é um personagem grandioso que volta a ganhar holofotes agora, com a série, em um momento muito oportuno, como aponta seu intérprete.

“Isso é um dos pontos da contemporaneidade e da oportunidade desse programa, desses episódios aparecerem neste momento”, diz Diaz em conversa com o blog por videochamada. “A questão dos militares, a questão ecológica e a questão da responsabilidade de um caboclo brasileiro recepcionar um chefe americano, ser responsável por um líder.”

Embora os Estados Unidos não fosse, em 1913, a grande potência que viria a se tornar, Diaz destaca a importância guardada no fato de um descendente de indígena brasileiro, apesar de militar,  “ser responsável pelo acolhimento, pela segurança, pelas informações e pelo caminho certo de um chefe de estado americano: isso é muito simbólico, tem uma força muito profunda, trazendo para os dias de hoje, na questão da discussão da Amazônia e na questão da responsabilidade ambiental que o Brasil tem no panorama atual”.

O filme mostra como Rondon recepicionou Roosevelt e o orientou a respeito da expedição, conhecedor que era do Rio da Dúvida, depois batizado como Rio Roosevelt, em Rondônia. Na série, a história parte da derrota do americano na sucessão presidencial de seu país, quando Roosevelt resolve viajar ao Brasil para explorar o que pensa ser uma região completamente desconhecida. Mas Rondon lhe mostraria que não era bem assim.

LICENÇA POÉTICA

O que não é bem como a série conta é o domínio de Rondon da língua inglesa, uma licença poética, digamos assim, para facilitar a compreensão e síntese da dramaturgia da produção, que será exibida simultaneamente em toda a América, inclusive nos Estados Unidos.

“A segunda língua do Rondon era o francês”, diz o ator. “É engraçado ver o Rondon falando inglês, eu dou uma pausa por causa do registro da obra audiovisual, mas ele não falava inglês com domínio, é uma ‘licença poética’ ou uma forçação de barra mesmo.”

Para parecer mais crível, o inglês dito por Diaz em cena é o de alguém que guarda sotaque da língua-mãe, no caso, o português, com acento originário do Brasil, tropeçando em algumas palavras –para as quais ele pede ajuda a interlocutores em cena. “É o que me salvou”, conta o ator, que fez intensa preparação para encarar o desafio de interpretar em outro idioma.

“A questão do inglês eu preparei bastante com a Bárbara Harrington, uma coach maravilhosa que o Bruno tinha indicado, uma pessoa de cinema, de teatro. Trabalhamos bastante em função da rigorosa exigência que o Bruno teve para uma finalização de um sotaque bem feito. Não sei o grau de maturidade que eu atingi, é meio desesperador interpretar em outra língua que não é a sua, que seja de completo domínio.”

MIDIÁTICOS

Diaz fala muito também do caráter midiático que unia Roosevelt e Rondon, dois homens de culturas completamente distintas.

“Eram dois grandes líderes, duas grandes figuras, promovendo o encontro de duas civilizações, e eram dois midiáticos: os dois tinham programas de muita visibilização de seu espírito aventureiro, o Roosevelt tinha ido à África, matou um montão de bichos por lá, uma questão de exposição midiática. Veio ao Brasil também depois de uma malsucedida  campanha eleitoral, também na ideia de expor o grande explorador, o grande cientista que ele era. O Rondon também colocava no cinema pequenos trechos das suas expedições, então, havia um interesse de mídia, de imagens, de grandes homens, em 1914, época dos grandes exploradores.”

No primeiro capítulo, ao qual tive acesso, Rondon aparece dirigindo o câmera e apontando exatamente o caminho que ele deve fazer para registrar a imagem no início da expedição.

Do lado de Roosevelt, veremos que ele se apressa em apontar uma arma para o primeiro indígena que encontra pelo caminho, estando também ele na mira de uma fileira de flechas empunhadas por outros indígenas. Nem por isso ele é o monstro que aparenta ser ali, quando Rondon intervém na cena selvagem. Em outro momento, a série mostra Roosevelt, ainda presidente, enfrentando bravamente a tentativa de J.P. Morgan de monopolizar o sistema de transportes dos Estados Unidos.

MEMÓRIA

Embora o episódio que narra o encontro entre Rondon e Roosevelt seja um grande recorte da história do marechal brasilero, capaz de retratar significativa parte da importância ambiental do Brasil, Diaz sabe que a trajetória do brasileiro, por si só, mereceria uma produção à parte, só dele.

“Eu acho que esse episódio do Rio da Dúvida não comporta a dimensão do Rondom, acho que o Rondon mereceria uma minissérie só para ele, sem dúvida alguma, para mostrar o que o Brasil é, o que o Brasil pode ser e do que o Brasil é capaz. Nesses quatro episódios, juntar a fibra, a visão, os pontos de vista, pra mim foi um trabalho de muita síntese.”

Resgatar Rondon, de todo modo, é um ganho, mas Diaz almeja ver a história do personagem chegar também à TV aberta, um meio gratuito e mais assessível à massa. “Acho que deveríamos sim ter em televisão aberta os nossos heróis brasileiros –heróis entre aspas”, ressalta. “Precisamos revivê-los. Se algum dia o Rondon chegar à televisão aberta, isso seria uma grande contribuição para a gente ler o nosso passado recente, que não é tão longínquo.”

O ator fala com a propriedade de quem sempre citou Rondon como um personagem a ser vivido. “Sempre o norteei como bom brasileiro, bom personagem, não só pela trajetória de integração social e racial dele, como tudo o que ele conquistou na questão da expansão geográfica, na questão da integração dos índios, na visão ecológica. Então, quando eu tive esse convite do Bruno, eu fiquei muito feliz porque era um desejo antigo.”

O diretor Bruno Barreto nos bastidores das filmagens / Divulgação

O ator se baseou em uma autobiografia do próprio Rondon, escrita com Esther de Viveiros, além de contar com vasto material de pesquisa levantada pela família Barreto, produtora da série, e dos próprios filmes registrados por Rondon à época. “Todo o universo que ele filmava, eu vi ali várias cenas reais das expedições.”

Para ele, Rondon já era muito bem visto na seara republicana e ecológica no seu tempo, pelo fato de ser um descendente de indígena e conhecer toda a fronteira oeste brasileira. “Ele promoveu a expansão dos postos telegráficos, é patrono das comunicações e participou da queda do império, da questão da república.”

“Acho que hoje em dia ele seria um exemplo, acho que podemos evocar o tal do Projeto Rondon, que continua vivo, ainda, apesar de incipiente, mas o projeto Rondon, de visibilização de um grande militar, com preocupações humanistas, iluministas, positivistas, isso para os dias que correm, do jeito que a nossa caserna está se movimentando e diagnosticando o nosso Brasil, acho que seria bom evocá-lo e colocá-lo como referência, inclusive na própria criação do planejamento do Parque do Xingu, do serviço de proteção ao índio, que posteriormente foi a Funai. Essa visão de integração racial brasileira seria muito bem-vinda de novo na proteção ambiental da Amazonia, que está correndo esse risco. Seria muito oportuno termos Rondon revivido nesse sentido.”

O elenco conta ainda com Dana Delany, Trevor Eve, Theodoro Cochrane, Gene Jones, Jeff Pope, Nick Westrate, Maya Kazan, Cláudio Jaborandy, Arilson Lucas, João Côrtes, Michel Gomes, Arieta Corrêa e Luisa Rosa.

A equipe filmou no norte de Matro Grosso, na Chapada dos Guimarães e em estúdios, com uma direção de arte rigorosa na reprodução da época.

O Hóspede Americano vai ao ar aos domingos, às 23h, na HBO e HBO Max, serviço de streaming do canal, onde ficará disponível, com lançamento semanal de cada episódio.

P.S.: Quem quiser se encantar com a versatilidade do nosso Rondon tem a chance de sintonizar o canal Viva para revê-lo como Jader, o adorável cafetão criado por Gilberto Braga e Ricardo Linhares em “Paraíso Tropical” (2008), atualmente em reprise, sendo ele o personagem que revela Bebel, a tentadora prostituta vivida por Camila Pitanga, que tomou para si o protagonismo da história.

 

 

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