Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Ex-âncora do Roda Viva revela bastidores políticos do programa em livro

Ricardo Lessa apresentou o Roda Viva entre 2017 e 2018 / Divulgação

Décimo terceiro nome a apresentar o Roda Viva, Ricardo Lessa ficou no mais tradicional programa de entrevistas da TV brasileira, como ele costumava anunciar, de 2018 a 2019. A partir daquela experiência, resolveu contar em livro como funcionavam os bastidores e as intrigas do programa. Em “Como Girei a Roda” (ed. Máquina de Livros, 145 págs.), Lessa revela que sofreu em sua gestão forte interferência da presidência da Fundação Padre Anchieta (FPA) mantenedora da TV Cultura, e dos membros do Conselho Curador da FPA na escolha de entrevistados e entrevistadores.

Em várias ocasiões, as aprovações ou não de convidados obedeciam a suspeitas sobre as possíveis linhas ideológicas de cada um, com o propósito de atender a supostas expectativas do chefe do governo do Estado.

A passagem de Lessa pelo Roda se deu no último ano da terceira gestão de Marcos Mendonça à frente da FPA. Metade desse período contou com Márcio França no comando do Palácio dos Bandeirantes, e a outra metade já tinha João Doria na cadeira.

Lessa entrou na Roda na esteira do propósito de Jorge da Cunha Lima, então presidente do Conselho –morto em agosto deste ano–, de tirar Augusto Nunes do comando do programa. O jornalista conta esses bastidores no livro, em narrativa que coincide com as apurações feitas por este  blog na época.

No livro, o autor afirma que não tinha apoio da direção de jornalismo da época, encontrando em Cunha Lima um forte aliado para sustentar suas sugestões de pauta, de entrevistados e entrevistadores. Até das reuniões de pauta Cunha Lima participava, conta ele.

Nem todas as gestões da FPA agem da mesma forma. Há comandos mais e menos subservientes, a depender do governador em exercício, mas embora a Fundação Padre Anchieta sempre ressalte sua independência do governo do Estado de São Paulo, que abastece em mais de 60% os cofres da FPA, a interferência do Palácio dos Bandeirantes na TV já foi assunto revelado em outras gestões.

O próprio Roda Viva sofreu uma troca não planejada em 2010, logo depois de o então âncora Heródoto Barbeiro insistir em questionar o então candidato à presidência José Serra, recém-saído do governo de SP, sobre o alto custo dos pedágios nas estradas do Estado.

Diz Lessa no livro: “A normalização e banalização da substituição praticamente automática da presidência da TV Cultura no momento da troca do governador paulista são, por si só, uma demonstração de falta de independência e do descrédito na liberdade de informação e no debate. Na Cultura, essa prática só preserva o cordão umbilical de influência de uma relação civilizada e desejável entre Estado e televisão pública. Cada novo governador acaba apontando um presidente mais conveniente a seu perfil político”.

Como os mandatos na presidência da FPA são renováveis a cada três anos, nem sempre o chefe do Palácio dos Bandeirantes tem essa prerrogativa no início de sua gestão, já que o governo do Estado tem outra periodicidade, no caso, de quatro anos. Assim, há muitas vezes um descompasso entre a troca dos cargos, como acontece agora. Em tese, o governador eleito Tarcísio de Freitas (Republicanos) terá de lidar na maior parte de seu mandato com a presença de José Roberto Maluf no comando da FPA, ocupante do posto desde o início da gestão  Doria, em 2019.

Maluf teve seu mandato renovado por mais três anos em julho passado. O presidente da FPA, por sua vez, acaba de renovar o contrato da jornalista Vera Magalhães, atacada em mais de uma ocasião pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, padrinho político de Freitas. Pela escolha de Maluf, ela segue no comando do Roda Viva com uma autonomia que poderá ser testada na prática a partir de janeiro, quando Tarcísio assumir o governo.

Ao chegar à FPA em 2019, Maluf trocou a direção de jornalismo e confiou o departamento a Leão Serva, que substituiu Lessa por Daniela Lima na ancoragem do Roda Viva. Após seis meses, Lima se mudou para a CNN Brasil, abrindo caminho para Vera Magalhães.

Marcos Mendonça, que por sua vez ainda estava na presidência da FPA quando Lessa comandou o programa, também fez sua escolha para o comando do Roda Viva quando iniciou seu segundo mandato à frente da FPA, em 2013, trocando Mario Sergio Conti por Augusto Nunes.

Na época, Mendonça justificou que o salário de Conti, hoje colunista da Folha, era muito alto, “maior que o meu”, disse-me ele. Mas a dispensa se deu após uma queda de braço entre os dois: valendo-se da autonomia que lhe fora dada pelo presidente anterior da FPA, João Sayad (1945-2021), Conti convidou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para ir ao programa. Contrariado com a escolha para aquele momento, por razões que não ficaram claras, Mendonça suspendeu o convite a FHC. Conti então fez valer sua decisão e levou FHC ao centro da Roda, sendo dispensado do posto logo em seguida.

O autor descreve sobretudo as agruras enfrentadas na gestão de Mendonça, mas conta que também foi atropelado pelo início da temporada de Maluf. Diferentemente de Nunes, que teve a chance de escolher seu último entrevistado, no caso, o ainda juiz Sergio Moro, Lessa diz ter enfrentado resistência com a escolha do nome que marcaria sua despedida: o general Santos Cruz, que àquela altura puxava a fila de ex-aliados de Bolsonaro, com senso crítico aguçado ao governo federal, ainda aliado de Doria, o governador da vez.

Lessa conta que foi repreendido pelo ponto eletrônico ao anunciar no ar, na segunda-feira anterior, que entrevistaria o general uma semana depois. A direção da TV Cultura insistiu em ter outro nome para aquele dia, o tributarista Bernard Appy, para falar de economia, e não abriu mão desta decisão, escalando inclusive outro apresentador, Aldo Quiroga, para a ocasião, e deixando a entrevista com Santos Cruz para ser exibida após o Roda Viva com Appy.

A conversa com o general acabou sacrificada pelo horário e foi ao ar à 0h, em plena madrugada, mas bateu rapidamente a de Appy nas visualizações do canal do Roda Viva noYouTube, provando que o interesse sobre o que o general tinha a dizer era maior e, hoje podemos afirmar, menos datada. A conversa poderia servir, sabemos agora, olhando em retrospecto, como um alerta sobre os desmandos que o governo Bolsonaro viria a cometer nos anos seguintes.

Atualmente, a entrevista completa de Santos Cruz no canal do Roda Viva no YouTube soma 177 mil visualizações, ante 43 mil de Appy.

O jornalista narra também no livro que a nova presidência da Cultura recusou sua proposta para entrevistar, ainda no início de julho de 2019, outro nome relevante de no time de ex-aliados de Bolsonaro, Gustavo Bebianno, alegando “falta de interesse jornalístico”. Bebianno, no entanto, estaria no mesmo Roda Viva oito meses depois, já sob o comando de Vera Magalhães e num momento em que Doria também já se descolava da imagem do Bolsodória, seu slogan de campanha.

CAMINHO DAS PEDRAS

“Como Girei a Roda” presta ainda um grande serviço a estudantes e jornalistas em início de carreira, ao explicar as diferenças entre o telejornalismo factual e a missão de comandar um programa de entrevista como o Roda. A jornada de Lessa incluiu uma série de entrevistas com os pré-candidatos à presidência da República naquele 2018, destacando-se Bolsonaro, Fernando Haddad, Guilherme Boulos, Ciro Gomes e Manuela d’Ávila.

Mais para efeito de estudantes e novos profissionais do jornalismo, ou mesmo daquela turma que relaciona o ofício à mera prática de publicar pitacos no Twitter, Lessa traça um panorâma da profissão em seus diversos meios de publicação, do texto impresso à TV, passando pelos acessos da internet e a repercussão nas redes sociais, descrevendo ainda uma minuciosa distinção entre TV comercial e TV pública.

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Cristina Padiglione

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