Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Exclusivo: autor de ‘Dom’, Tony Bellotto se compadece da dor da mãe do personagem

Dom, vivido por Gabriel Leone na série, com Flávio Tolezani, intérprete do pai, Vitor / Divultação

Autor do livro homônimo que deu origem a “Dom”, série brasileira de maior sucesso mundial da Amazon Prime Video, Tony Bellotto fala pela primeira vez, com exclusividade, sobre as contrariedades da mãe (Nídia Almeida) e de uma das irmãs (Érika Grandinetti) de Pedro Dom com relação à produção protagonizada por Gabriel Leone, uma versão ficcionada do personagem real.

As duas tentam barrar na Justiça a exibição da série, criada e dirigida por Breno Silveira, e sua continuidade, tendo sido derrotadas em duas instâncias. No momento, a Conspiração, responsável pela produção do título, grava a segunda temporada.

“Eu me compadeço demais da dor delas”, diz Bellotto. “Eventualmente, esclarecimentos que eu quero fazer ao que elas têm dito não demonstram de forma alguma a vontade de me contrapor a elas, pelo contrário. Eu sempre fiquei muito preocupado de esse trabalho suscitar dores e tristezas que talvez elas não quisessem sentir de novo”, afirma o escritor, antes que eu conclua qualquer pergunta, em conversa por videoconferência.

Publicado pela Cia. das Letras, o livro ganhou uma sobrecapa com foto do cartaz da série.

Apesar da dor, Bellotto enfatiza que o livro e a série podem ajudar muitos pais e filhos a lidarem com o drama da dependência química, e tem ouvido isso das pessoas. “Por isso a série é um sucesso universal”. E acredita que houve, de sua parte e também de Silveira, não a tentativa de amenizar o personagem, mas de aprofundá-lo, “na dimensão humana”.

Segundo o músico e escritor, ele e Silveira tentaram ouvir Nídia em mais de uma ocasião, mas ela não quis nem saber de ler roteiro: seria a versão dela ou nenhuma. Nídia tem repetido que não queria de modo algum que “o filme”, formato original do projeto, que nasceu em 2009, quando Luiz Victor Lomba, pai de Pedro Dom, procurou por Silveira.

O guitarrista e escritor Tony Bellotto

De fato, a produção chegou a ser cancelada, tanto em livro como na tela, em razão das negativas da matriarca. Em 2015, no entanto, a decisão do STF de derrubar a necessidade de autorização prévia de biografados ou parentes de biografados mortos reacendeu a possibilidade da obra, que voltou a ser discutida entre Silveira, Bellotto e Lomba, o maior interessado em contar a história do filho e único a ter o nome preservado na série, com interpretação de Flávio Tolezani.

Érika e Nídia acusam a série de retratar o pai, morto em 2018 em consequência de um câncer, como herói de ações que couberam à mãe. Segundo Érika, era a mãe quem internava o irmão para tratamentos contra as drogas e era o pai quem sempre o retirava das clínicas antes da hora. A mãe chegou a acorrentar o filho na cama para que ele não saísse de casa, cena assim relatada no livro, mas não na série, onde o pai assume tal ação.

Bellotto avisa no livro que faz um retrato ficcional inspirado no personagem real. A adaptação para a tela sofreu também outras mudanças, como é de praxe para atender a outra linguagem, e, como argumento de defesa básico, é vendida como ficção, não como documentário.

Embora Silveira tenha admitido, em carta à equipe, que conta a história a partir de um ponto de vista –o do pai–, a outra irmã, Verônika, que até agora não se manifestou, também participou dos depoimentos que geraram a obra, relatando histórias do jovem de classe média da zona sul carioca que se tornou assaltante de residências de luxo no Rio para sustentar a dependência em cocaína.

No último fim de semana, a jornalista Ana Cláudia Guimarães realizou uma live com Nídia e Érika, que mandou recados a Verônika por meio da transmissão, demonstrando o rompimento com a irmã, a quem acusa de ter sido iludida pelo pai, “um mau caráter”, nas palavras de Érika.

Nídia e Érika insistem que a série foi produzida sem o aval delas e acusam que tudo foi feito por cobiça financeira. Quando Ana Cláudia faz uma pergunta de um espectador que quer saber por que o livro não foi contestado, elas sequer citam o livro de Bellotto, tratado por elas como roteirista da série, o que ele não é, e mencinam apenas o livro de Victor Lomba (“O Beijo da Bruxa”), também usado para a criação de “Dom”.

A mãe e a irmã se apegam a detalhes que não interferem na essência da trajetória de Dom, como o fato de a família da série sequer ter um cachorro e de Leone não ser fisicamente parecido com o personagem real.

Ainda na conversa com Ana Cláudia, Nídia disse que seu neto, filho de Pedro Dom, vem sofrendo bullying na escola por causa da série. Seu nome, no entanto, não chega a ser mencionado em cena na 1ª temporada, que cita apenas a gravidez da mãe.

Em outra transmissão pela internet, realizada logo após o lançamento da Amazon Prime Video, em junho passado, com Silveira e Bellotto, os dois comentam que a troca de nomes foi uma sugestão de Lomba, para não expor a mãe e as filhas. Em nenhum momento os dois comentaram sobre a resistência de Nídia (na série vivida por Laila Garin) à obra, o que só veio à tona quando Érika despejou sua dor em um post no Instagram, pedindo que o público não veja a série.

A história é complexa, e vale a pena ser debatida com mais profundidade. Abaixo, deixo a palavra com Belotto:

EU ME COMPADEÇO

“Eu acho importante falar, por causa dessas coisas que saíram na internet [publicadas] pela Érika e das declarações da Nídia, eu me compadeço demais da dor delas.

Fico muito chateado que elas estejam sofrendo com a volta dessa história, mas é que eu acho que tem um outro lado que é muito importante. Primeiro que eu tenho ouvido muita gente me falar, por causa do livro e da série, que essa história ajuda muita gente, muitas famílias que passam por problemas parecidos, que são muitas, a questão da dependência da droga, de filhos que se encaminham pelo crime, da luta dos pais pra impedir que os filhos trilhem esses caminhos”.

PERSONAGEM DIGNIFICADO

“Acho que esse olhar ficcional que eu dei pra história do Pedro Dom e que está na série também dignifica a figura do Pedro Dom, dignifica a figura dele. Não é uma vontade de minimizar o mal que ele causou como assaltante, como bandido, mas acho que antigamente, antes do filme, do livro, se a pessoa fosse na internet, ela via notícias e fotos do cara sendo morto pela polícia, notícias muito cruéis e duras, e acho que com essa visão que a gente deu, a gente entende toda a problemática, a dor da família, a luta deles, a maneira trágica com que o filho vai se encaminhando pra isso e ninguém consegue mudar o destino dele, sabe?”

COMO NASCEU O ENREDO?

“É um livro de ficção. Tem um momento em que o Victor, pai dele, fica insistindo pra eu contar a história… Durante o período em que o Pedro Dom estava vivo e eu já morava aqui em Ipanema com a Malu [Mader], nossos filhos eram pequenos, e eu acompanhei pelos jornais, pela imprensa a trajetória do Pedro Dom. Eu ficava muito assustado, tinha inclusive medo. A gente falava, eu e a Malu: ‘caramba, vai que esse cara vem assaltar a gente aqui?’. Foi um período em que ele realmente mobilizou a cidade, os habitantes, enfim.

E eu lembro que uns anos depois, eu lancei um livro, ‘Os Insones’, eu fui fazer o Programa do Jô para falar do livro. Passaram-se alguns dias, no site dos Titãs, eu vejo lá um recado, e foi a primeira vez que eu tive contato com o pai do Pedro, o Victor Lomba. O Victor mandou um recado: ‘Olha, eu sou Victor Lomba, pai do Pedro Dom, eu queria falar com você’. Eu levei um susto com aquilo. Eu não quis me envolver com aquilo e não respondi.

Corta. Passam sei lá, uns dois anos, o Breno Silveira, que eu já conhecia da [produtora] Conspiração, e ele já tinha feito inclusive a fotografia de alguns clipes dos Titãs. O Breno me liga e fala: ‘Tony, olha só, eu queria conversar com você porque eu tô pensando em fazer um filme baseado na história do Pedro Dom e o pai dele quer muito que você faça o roteiro. Então, eu queria conversar com você.

O Victor era um cara muito difícil, uma cara complicado, irascível, dava rompantes, um cara difícil mesmo. Eu acho que quando o Breno me chamou, já tinham uns dois ou três roteiristas desistido da empreitada, porque não suportavam, tinham até medo do Victor. Ele era um cara barra pesada, que foi do Esquadrão da Morte.

Mas daí, nesse contato com o Victor, a gente se afeiçoou, eu gostei dele, ele gostou de mim. Ele falou: ‘eu sempre achei, desde que eu te vi lá no Jô Soares, que você que tem que escrever a história do meu filho’. E começamos a trabalhar nessa ideia de um roteiro que seria um filme que o Breno faria.”

TESTEMUNHAS

“Foi nessa época que eu tomei conhecimento da outra irmã mais jovem, a Veronika, que sempre foi muito colaborativa, conversou comigo várias vezes, disse muita coisa por telefone, por email. O Victor contou tudo, claro que o interesse dele era contar essa história.

E eu na época tentei contato com a outra irmã, que era a Érika, eu acho, não tenho certeza absoluta, que cheguei a mandar um e-mail pra ela, ela não me respondeu. E depois, tanto a Veronika quanto o Victor me falaram: ‘olha, a Érika não quer falar porque a história traz muita dor, muito sofrimento’. Eu disse Ok.

Em relação à Nídia, a mãe, tanto eu como o Breno sempre achamos que era muito importante ouvir a versão dela, até para confrontar com a do Victor, mas era muito difícil, ela também não respondia às tentativas que a gente fazia de ela conversar com a gente.

Eu lembro que um dia, a gente conseguiu marcar um encontro, ela marcou o lugar, era uma churrascaria lá no Recreio dos Bandeirantes, eu fui com o Breno, lembro que a gente demorou para chegar, e quando a gente chegou nessa churrascaria, tipo no meio da tarde, estava vazia a churrascaria. Aí eu vi a Nídia com o filho do Pedro Dom, o Pedrinho, era pequenininho, estava brincando numa área de playground da churrascaria.

Imediatamente chegou um cara que era o Rony, se apresentou como Rony, um ator, que estava ali representando a Nídia, intermediando a conversa, ela estava a poucos metros da gente, numa outra mesa. E ele ficava falando: ‘olha, a Nídia tá chateada porque vocês estão ouvindo a história do Victor, ela quer contar a historia dela. Eu e o Breno, a gente repetiu inúmeras vezes: ‘mas a gente quer muito ouvir a história dela, muito, a versão da Nídia’. Ela não só não falou nada ali,como nunca quis contar a história dela pra mim.

Mas ela não conversou diretamente com vocês? Havia uma pessoa indo e vindo com os recados da outra mesa?

Na verdade, ele não ficava indo e voltando, porque ela estava ouvindo o que a gente falava, mas ela não falava com a gente, e ele meio que falava por ela. E a gente: ‘eu compreendo, mas a nossa ideia não é fazer a versão do Victor, a versão disso ou a versão daquilo, a gente quer entender a história, e depois nós vamos fazer a nossa versão, porque tem que adaptar isso pro filme.’”

PAI E FILHO

“E na cabeça do Breno, desde o momento em que ele me chamou, ele queria fazer a história focada nessa história do pai e do filho, que é quase uma obsessão temática do Breno. Ele repete muito nos filmes dele, no ‘Gonzagão e Gonzaguinha’, no ‘Dois Filhos de Francisco’, ele vê muito as histórias por esse prisma, e eu achei interessante. E a gente ficou trabalhando alguns meses no que seria esse roteiro. Eu não cheguei a escrever um roteiro, mas escrevi uma sinopse, uns estudos e tal, mas o projeto não foi pra frente.

E não foi pra frente porque a gente sentia, naquela época, que haveria uma contestação da Nídia e tal, e naquele tempo, a lei ainda permitia que um parente inviabilizasse uma produção. A lei mudou de lá pra cá. Lembra quando teve aquela questão da biografia do Roberto Carlos? O STF decidiu que se pode processar depois, mas não se pode impedir a publicação [da obra].”

SUJEITO INSISTENTE

“O projeto dançou, a gente ficou acho que alguns anos, não nos falamos, não falamos mais sobre isso. Um belo dia, o Victor me liga: ‘Tony, esquece, o negócio do Breno, não deu certo, mas eu quero que você escreva um livro com a história do meu filho’. Eu falei: ‘Victor, eu sou um ficcionista, eu não sou um jornalista, eu não gosto de biografia, essa obrigação de ser exato, esse tipo de coisa não me motiva, eu acho que eu não sou o cara’. E eu estava fazendo muita coisa na época, escrevendo outro livro, fazendo shows, gravando um disco com os Titãs, não lembro, exatamente, mas eu não estava a fim, estava sem saco, não queria fazer isso. Mas ele insistia, Cristina, ele me ligava quase toda semana, era um homem muito insistente.”

 

CULPA

“E eu fui percebendo que ele tinha uma culpa, ele era um homem assim, assombrado, destruído pela culpa, ele sentia uma culpa terrível de não ter salvado o filho, e era um homem interessante, porque foi da polícia , foi um homem violento, se desiludiu com a polícia, ensinou pro filho dele que polícia e bandido eram a mesma coisa, e de repente ele viu o filho dele se viciando em cocaína e indo pro crime, e não consegue salvá-lo. Então, ele tinha essa culpa.

De alguma maneira, ele achava que contar essa história ia redimi-lo. Eu até entendia, mas eu estava sem disposição, sem inspiração pra fazer esse trabalho. E eu estava a um ponto que ele começou a insistir tanto, que eu pensei: ‘vou pensar em alguém pra escrever esse livro e eu vou passar a bola, porque eu realmente não tenho como fazer e ele tá me enchendo o saco’. Eu cheguei a pensar no Guilherme Fiúza, que eu tinha acabado de ler o ‘Meu nome não é Johnny’. E o Guilherme, jornalista, fez muito brilhantemente aquele livro, que é baseado numa história real também.”

A RETOMADA

“A Malu tava fazendo uma arrumação aqui em casa, a minha mulher, e ela achou as anotações minhas da época do roteiro, isso já fazia anos. Quando ela me mostrou aquilo, ela falou: ‘olha isso aqui’. Eu falei: ‘caramba, interessante as coisas que eu anotei, e eu vi que tinha ali um material pra eu fazer um romance, mas um romance de ficção. Aí eu liguei pro Victor e falei: ‘ok, eu vou fazer a história do teu filho’.

‘Ai, Tony, muito obrigado. Eu sabia…’

‘Mas’, eu falei, ‘eu vou fazer um livro de ficção, porque eu não sou jornalista, não sou biógrafo, sou ficcionista, vou fazer uma história de ficção baseada na história do teu filho e daí você vê se você aprova.’ Ele me agradeceu demais e aí eu comecei a escrever olivro. Nesse processo de escrever o livro, eu aprofundei. Quis ouvir mais informações, eu já tinha informação de que tanto a Nídia quanto a Érika não queriam falar mais nada, então eu ouvi mais coisa do Victor, mais coisa da Veronika, consegui ouvir também algumas versões de algumas pessoas, tipo fontes, pessoas da polícia, um primo do Pedro Dom que conviveu com ele na época dos assaltos, então era uma pessoa que conhecia uma parte da vida do Pedro Dom que ninguém da família conhece –nem o pai, nem a mãe nem as irmãs, que era quando ele ficava sozinho, fugindo da polícia e escondido.

Reuni muita coisa e comecei a fazer uma história, mas movido pela imaginação. Eu tinha algumas referências, o livro do Don DeLillo, aquele romancista americano que escreveu um livro chamado ‘Libra’, em que ele narra a história do Lee Oswald, assassino do John Kennedy, de uma maneira ficcional. Falei: ‘vou trabalhar por aí, vou fazer uma ficção em cima da história’.”

TRAGÉDIA GREGA

“E aí, nesse processo, quando eu vi que estava ficando legal, eu vi que ia dar certo, eu falei: ‘caramba, preciso falar com o Breno porque o Breno é o cara que me trouxe pra essa história, é o cara que me arpesentou ao Victor’. E apesar de alguma forma no livro eu estar focando mais no Pedro, eu mantive, essa, que eu acho que é o ponto central do livro e da série, que é realmente a relação do pai com o filho, e nisso acho que [a história] toma uma característica de uma tragédia clássica, uma tragédia grega mesmo, do pai que não consegue fazer o filho se livrar do destino a que ele está condenado.

Aí liguei pro Breno. Falei que estava fazendo uma ficção, ele também estava fazendo mil coisas, mas ele falou: ‘cara, que bom que você está fazendo, me interessa, vamos fazer’. Quando eu terminei o livro, numa primeira versão, antes de mandar pra editora, eu mandei pro Breno, ele gostou muito e falou que a Amazon estava interessada, e acabamos publicando o livro e ele acabou fazendo a série.”

RELEITURA FICCIONAL

“Eu mandei pro Victor, fiquei muito tenso porque eu inventei muita coisa, eu mudei muita coisa, é importante ressaltar, até que em defesa e respeito a esse sofrimento da mãe, das irmãs. Então, eu centrei a história no pai e no filho porque o pai tinha me contado toda a história, o pouco que eu sabia do filho eu fui inventando. O que não tinha narrativas do que ele fez no tempo em que ele estava escondido, no tempo em que ele estava preso, e as figuras da mãe e das irmãs, eu mantive na história, mas com outros nomes, de uma maneira muito respeitosa, e você pode ver que não há nada, no meu livro nem na série, que ofenda moralmente nem a Nídia nem a Érika.”

PERSONAGEM DIGNIFICADO

“No caso da série, o personagem da Érika nem existe. Na série, o Pedro Dom tem só uma irmã, que é o equivalente da Veronika, que no livro chama Verena. E no meu livro eu mantive a Érika como Monika, com algumas histórias que tinham sido contadas pela Veronika, que é a irmã dela, e pelo Victor. Mas eu tive um cuidado muito grande de respeitar, de quando o filho do Pedro Dom fosse ler o livro, ele não se surpreender, não ser agredido com nada. As partes mais pesadas, o menino pode ver no Google, que vai ali e vê, mas as partes que eu tive que fazer uma introspecção são pensadas com muito respeito.

Eu acho que a ficção dignificou o personagem, eu tenho certeza disso. Então, é por isso que eu acho que não há como atacar, com a Érika às vezes insinua, que foi um lance de homens, como se tivesse uma coisa meio misógina, até essa questão do gênero, eu acho injusto ela falar isso.”

SEM MISOGINIA

“Se eu tivesse ouvido a história da mãe, a história da Érika, com certeza o livro seria um pouco diferente, mesmo que ele continuasse focado na história do pai e do filho, eu teria obviamente usado as coisas que ela me dissesse. Eu procurei, eu quis. E eu acho que o olhar da filha, da Veronika, retira essa ideia de misoginia, até porque não há mesmo.  É 50% da família, é uma metade igual.”

NÃO FOI POR DINHEIRO

“O Victor sempre me disse e disse pro Breno que uma parte do dinheiro que ele ganhasse, ou todo o dinheiro, ele encaminharia pro neto [Pedro, filho de Pedro Dom], pros estudos do neto. Quando ele morreu, um pouco antes do livro ser publicado, ele fez uma empresa com essa filha, a Veronika. Então, ela que herdou tudo que ele recebeu do livro e da série, e ela ficou como minha sócia no livro, porque quando o Victor me contou tudo, eu falei: ‘Victor, eu vou fazer um livro, e a gente discutiu  uma porcentagem do que eventualmente o livro possa render, pra sempre. Eu sou dono de 60% dos rendimentos do livro, e ele, de 40. Com a morte dele, a minha sócia no livro é a Verônika.

Quando eu digo que eu me compadeço da dor da irmã e da mãe, eu sou sócio da irmã e da filha delas, eu estou, de alguma forma, envolvido por essa família, eu fiquei amigo do Victor, eu me compadeci da história do Pedro Dom, eu sonhava com Pedro Dom.

Érika disse que elas ainda não viram um centavo desses rendimentos

É, aí é uma questão da família, que infelizmente eu não posso fazer nada. Agora, essa questão de roubar a história, um que roubou do outro a tua história, a minha, isso é muito subjetivo, porque quando você entra com o olhar da ficção, a história não é mais de ninguém, e por mais que ela tenha uma versão, como eu te falei, nos momentos em que o Pedro estava sozinho, todos nós só podemos supor, tanto eu, quanto você, quanto a mãe dele, quanto qualquer outro.”

DRAMA FAMILIAR

“Eu, como pai, como membro de uma família, entendo essas questões, não precisa viver as mesmas questões pra entender a aflição de um pai em relação a um filho quando acontece alguma coisa que te preocupa. Eu sempre tive esse olhar muito condecendente e cúmplice mesmo, por isso eu fico assim chateado, e o Breno acho até que está mais chateado do que eu, de elas insinuarem que não houve uma preocupação nossa, ou que a gente fez isso só pela vontade de ganhar dinheiro.”

DINHEIRO

“Imagina, você sabe como se lê pouco no Brasil. Mesmo ‘Dom’ sendo um best seller, tudo o que eu ganho com o livro, em dois meses de turnê com os Titãs eu ganho mais, eu não fiz isso por dinheiro. Fui movido mesmo porque é uma grande história e que eu senti que poderia escrever um livro do qual eu me orgulho.”

OUTRO OLHAR PARA A HISTÓRIA

“Mas não houve jamais uma vontade de deixar alguém melhor na fita que o outro, de maneira alguma. Sinceramente, eu tenho uma curiosidade. Eu adoraria que a Érika e a Nídia escfrevessem a versão delas. Eu até me disponho a ajuda-las, e isso eu digo sinceramente, sem ironia nenhuma, porque eu fico curioso, eu tenho curiosidade de ouvir essas histórias delas.”

POR QUE O LIVRO NÃO É ALVO DE CONTESTAÇÃO?

“É triste admitir isso, mas a grande verdade é que todo mundo lê muito pouco. Eu tive o azar de lançar o livro no início da pandemia. Foi terrível. Eu não pude fazer nem uma noite de autógrafos, as matérias foram truncadas, aquele início de pandemia, por zoom, telefone… Então, ele não teve um lançamento à altura do que teria numa situação normal. Eu acho que as pessoas mal ficaram sabendo do livro, o livro só começou a ser mais falado no momento em que a série surgiu, e eu lembro que os advogados da Nídia chegaram a entrar em contato com a editora, reclamando de alguma coisa do livro.

Eu já falei na época que 40% é da Veronika. Mesmo assim, eu me dispus ainda, desses meus 60%, dividir uma parte com a Nídia, ou com o menino, que fosse em nome do filho, direto, mas eles não aceitaram e depois não contestaram mais.

Eu acho que o livro rende tão pouco, que ninguém se interessa em contestar, você acaba tendo que pagar mais pro teu advogado do que o livro vai te render. Na produção da Amazon, obviamente, você vê que foi investido mais dinheiro, mas isso não quer dizer também que o Breno tenha ganhado uma fortuna ou que os atores tenham ganhado fortuna. A gente sabe, a produção é grande, mas o grosso do dinheiro vai pra Amazon, não pra nós.”

TODO OUVIDOS

“Acho que as pessoas que não são do ramo, têm uma visão um pouco errada de como rola esse dinheiro, como se tudo rendesse uma fortuna, não sei explicar. Eu sei que a minha postura não é nada beligerante, é de estender a mão e dizer: ‘vamos ouvir essa versão de vocês’. Tem outras temporadas a vir, quem sabe a gente não entra num acordo e transforma o que tá pra vir ainda em cima da visão delas? Eu não tenho o menor problema com isso. Eu tenho um carinho por essa família, eu sofri com o Victor contando, sabe, do dia em que ele morreu. É muito triste. A gente, que é pai e mãe, sabe. É uma dor que eles nunca vão realmente curar, mas há maneiras de a gente dignificar e contar essa história de um modo que não ofenda ninguém.”

ADAPTAÇÃO, NOVAS TEMPORADAS

Só o meu livro não conseguiria preencher mais de uma temporada. O Breno se baseou muito no livro do Victor também, “O Beijo da Bruxa”, que fala da vida pregressa do Victor, combatendo crime e outras histórias das quais ele não se orgulhava, mas que a gente foi atrás, também , que são histórias do Esquadarão da Morte.”

PERSONAGEM GLAMOURIZADO?

“Ele tem uma fama de ter sido um assaltando violento, mas ele tem algumas coisas a favor dele: ele nunca matou ninguém. Pra um bandido, é um feito e tanto. Não tem nenhuma acusação nesse sentido, e ele tem uma coisa que eu confirmei com pessoas que conviveram com ele na Rocinha: ele tinha um amor muito grande pelas crianças, porque ele virou um herói para os meninos da favela, eu falo isso no livro.

Na hora em que ele virou um bandido famoso, os meninos viam ele como um jogador de futebol, do Flamengo, um ídolo. E ele falava pros meninos: ‘Isso aqui não é vida pra ninguém, vocês têm que estudar’.

O Pedro Dom era um personagem mais ambíguo do que essa imagem que a gente tem dele no Google. Claro, as pessoas que foram vítimas dos assaltos dele têm uma visão muito ruim dele, eu compreendo, é chata a situação que eu fico de tentar dar alguma dignidade pra um personagem que bateu na tua filha, que botou revolver na cabeça da tua filha, eu já falei com pessoas que foram vítimas dele. Mas eu acho que é difícil conseguir entender o que vai dentro da cabeça da pessoa.

Por isso é que eu falei que só a ficção poderia me dar a oportunidade de falar nesse personagem. Porque o que ia na cabeça dele, quando ele fazia essas coisas? Um menino que teve uma criação, teve aula de inglês, aula de natação, como qualquer menino de classe média, e opta por essa vida.

Então, foi aí que eu mergulhei na ficção, na minha imaginação, e, claro, o personagem que nasce dali não é nem o que o Pedro Dom foi, mas é um personagem que existe agora na ficção.

A tentativa nossa não foi amenizar o personagem, mas aprofundar, na dimensão humana.”

DO LIVRO PARA A TELA

“Eu gosto de me surpreender. Quando eu vi essa primeira temporada, eu conhecia alguma coisa dos roteiros até o 3º ou 4º episódio, depois não sabia mais o que aconteceria. E fiquei muito bem surpreendido. Claro que qualquer adaptação para o audiovisual muda muito. Não existe nenhum livro que seja igual, você pode gostar mais ou menos do livro ou do filme ou da série, mas é sempre diferente, é impossível fazer uma versão 100% fiel ao livro, são linguagens diferentes.

Erika fala: ‘Nós éramos uma família disfuncional’. Primeiro que eu acho que toda família é um pouco disfuncional, eu sei que no caso delas é difícil. Agora, o dinheiro tá com a Veronika, não sei qual é o grau de intimidade e do relacionamento delas, eu sei que tudo isso é difícil, eu acho que é uma grande causa, enfim.”

HISTÓRIAS QUE ENSINAM

“A narrativa dessas histórias, que são histórias tristes, de pessoas que são derrotadas pelo vício, que têm vidas que vão contra todos os nossos princípios morais e éticos, elas nos ensinam, e nos ensinam não só em situações limite, mas em situações simples. A gente fica com culpa quando um filho fica resfriado, imagina quando um filho começa a usar drogas ou a roubar coisas pra usar drogas, são situações difíceis e a que qualquer um está sujeito.

O Breno reitera muito isso pra mim: a gente precisa contar essa história e não é só porque é uma grande história, não é uma história de um bandido, é uma história de uma tragédia humana, que diz respeito a todos nós. Não é à toa que a série está fazendo sucesso no mundo inteiro. É universal, as pessoas entendem.”

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Cristina Padiglione

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