‘Narciso em Férias’ abraça um país retratado na cela de Caetano
Como anunciou Pedro Bial na ótima entrevista feita com Caetano Veloso na sexta-feira (4), o documentário “Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil (a mesma dupla de “Uma Noite em 67”, sobre o Festival de Música da Record), chega ao Globoplay nesta segunda-feira (7) só para assinantes. O filme, que consiste em um longo depoimento de Caetano, resgata todo o contexto da prisão do músico em 1968, poucos dias após a decretação do Ato Institucional número 5, o AI 5.
Em quase uma hora e meia, Caetano lembra como foi preso em seu apartamento em São Paulo, o que fez naquela noite que precedeu a prisão sob o seu primeiro teto, ainda alugado, com a mulher, Dedé, e toda a angústia que se seguiu a partir dali.
Caetano fala sobre as canções que lhe causaram sensação de mau agouro, justamente aquelas cantadas na noite anterior à prisão. “Fico com pena”, disse ele a Bial. Algumas delas, chegou a ouvir no rádio dos “soldadinhos”, como ele se refere aos guardas da prisão. E fala das músicas que lhe davam esperança, com “Hey Jude”, dos Beatles, no topo.
Detido sob o pretexto de ser interrogado, passou longos dias sem saber do que se tratava e só foi questionado após mais de um mês sobre um show em que teria cantado o Hino Nacional em tom de paródia na boate Sucata, no Rio de Janeiro, com Gilberto Gil e Os Mutantes. O depoimento dado à polícia na época foi encontrado por uma das noras de Caetano recentemente, pouco antes da produção do documentário, iniciado em 2018,e é todo lido pelo próprio músico no filme.
“A redação é muito… (risos) é genial, não tem aspas, não tem nada”, diz ele sobre o documento, após ler o trecho: “Perguntado se sabe cantar a Tropicália, respondeu que sei porque é o autor desta música.”
Mais adiante, faz a ressalva de quem ri, mas tudo aquilo é preocupante. Os argumentos das autoridades da ocasião só não nos parecem hoje mais bizarros porque voltamos a ouvir e ver, graças às redes sociais antissociais, alegações que pensávamos estar superadas, mas é preocupante como as justificativas “patrióticas” expressas naquele documento vêm ao encontro de posicionamentos que confrontam atualmente a ciência e a cultura.
A correlação com o obscurantismo atualmente cultuado por tanta gente dá ao filme uma relevância ainda maior do que ele teria por si só, porque estabelece não apenas uma memória do que ocorreu 50 anos atrás, mas traça principalmente um diagnóstico de doença crônica de um paciente, no caso, o Brasil, que não a reconhece como tal, como o músico expressou em sua entrevista a Bial.
Parece enfadonho pensar em um documentário feito apenas e tão somente do relato de seu protagonista, sem outra imagem que não seja ele sentado em uma cadeira diante de um paredão neutro, com poucas intervenções, apenas em áudio, de Renato Terra, que provoca alguns complementos às informações e lembranças do músico.
Mas o desabafo, no contexto de 68 e diante da arbitrariedade de ser detido sem saber o porquê, compõe um retrato de Brasil muito mais abrangente que a solitária onde o baiano foi confinado. Caetano cita pequenos gestos que ali evidenciam a luta de classes, o respeito ou desrespeito a alguém de acordo com a cor e o nível de instrução do cidadão, a representatividade de canções ouvidas e cantadas antes e durante a prisão, sem falar naquelas que nasceriam a partir das memórias do cárcere.
É Renato Terra quem lhe entrega, em determinada altura do relato gravado para o documentário, uma edição da revista Manchete igual à que sua mulher, Dedé, lhe entregou na prisão. A ação só foi possível graças a um sargento preto que clandestinamente permitia a entrada dela na cela. Ele folheia a revista, surpreso, se emociona, tenta falar e consegue apenas lembrar que aquele sargento, “um anjo, uma divindade na nossa vida”, depois seria preso. A essa altura, falta-lhe voz, os olhos se enchem e ele se rende à solicitação de uma pausa.
A referida edição da Manchete, publicação da editora Bloch, apresentava as primeiras fotos da Terra feitas do Espaço e inspirariam, anos mais tarde, a belíssima canção “Terra” -“por mais distante,o errante navegante, quem jamais te esqueceria”, embala o refrão.
“Hey Jude”, dos Beatles, era “a canção positiva, sinal de que ia melhorar minha situação”, ele lembra. “Aquele final, com aquele coral repetido, aqueles acordes maiores, eu tomava aquilo como sendo um anúncio de coisas boas”, rememora. E canta “Hey Jude”, como canta “Irene”, encerrando com “Terra”.
Enquanto esteve na solitária, Caetano chegou a pensar que toda a sua memória fora dali teria sido um sonho, e que a vida sempre teria sido aquilo. Não conseguia chorar nem ter ereções, mesmo se tocando. “Me senti ressequido, espiritualmente ressequido, meu espírito não tinha como fluir através do corpo, justamente eu já não acreditava no meu corpo como uma coisa que viveu as outras coisas.”
Ressalta que não chegou a ser torturado, mas deu graças quando, depois de ser conduzido pelas ruas desertas da Vila Militar, no Rio, com dois agentes andando atrás dele, apontando-lhe suas armas, soube que só iriam tosar seus caracóis em um barbeiro instalado em uma casinha.
A tortura é, no entanto, citada como um mal daquele tempo que até hoje se impõe com “presos de baixa renda, por quem as pessoas não têm respeito: pode-se fazer tudo, e isso é simplesmente reafirmação da escravidão, e nós temos que trabalhar, os criadores da civilização brasileira, todos nós, cidadãos brasileiros, temos que realizar a segunda abolição.”
“Narciso Em Férias”, nome do documentário, é um dos capítulos de seu livro, “Verdade Tropical”, que deve ser também editado em um livro solo, só sobre a prisão e tudo o que ela representou e representa no contexto da história do país. A edição sairá em breve pela Cia. das Letras.
O título se refere ao fato de Caetano ter passado mais de 50 dias detido, sem se olhar no espelho, o que ele só foi fazer quando chegou à sua casa em Salvador, acompanhado de Gil. A prisão durou de 27 de dezembro de 68 a 14 de fevereiro de 1969, e resultaria no exílio dos músicos do país, por determinação do governo ditatorial de Costa e Silva.