Galã referência da TV brasileira, Tarcísio Meira não foi refém do estereótipo
João Coragem, que nunca cruzou com Shazan no plano da teledramaturgia, correu ao seu encontro em outra esfera.
A morte de Tarcísio Meira, o maior galã da TV brasileira, aos 85 anos, foi anunciada há pouco, menos de 24 horas após a partida de Paulo José, 84. Falta-nos prazo para cumprir o luto demandado pelo currículo e pela grandeza dos dois.
Protagonista da primeira telenovela diária da TV brasileira, “2-5499 Ocupado”, ao lado de sua Glória Menezes, Tarcísio se tornaria a maior referência da TV brasileira do perfil que se convencionou chamar de “galã”, mas escapou com louvor da cilada de ficar preso ao estereótipo.
Em um tempo em que as carreiras artísticas não eram norteadas por grandes estrategistas de imagem, Tarcísio Pereira de Magalhães Sobrinho se notabilizou pela beleza, pela voz empostada e o porte físico do homão desejado por onze entre dez mulheres.
Por cinco décadas, personificou o sonho de dramaturgos, cineastas, publicitários dispostos a venderem suas marcas e da mulherada rotulada como “dona-de-casa”, que na verdade sempre foi “a dona da casa”, pelo poder de decisão sobre o que se consome nos milhões de lares deste país.
Mas Tarcisão, aumentativo que se notabilizou especialmente após a coexistência de Tarcísio Filho, o Tarcisinho –como acontece com Fernandona (Montenegro) e Fernandinha (Torres)– logo mostraria que não seria intérprete de um papel só e que não estava condenado à testosterona televisiva.
Nem só de João Coragem (“Irmãos Coragem”, 1970), Capitão Rodrigo (“O Tempo e o Vento”, 1984), D. Pedro I (no filme “Independência ou Morte”, em 1972) ou Renato Vilar (“Roda de Fogo”) se fez um ator que honrou a comédia em “Guerra dos Sexos” (1983) e “Araponga” (1990).
Performava com maestria um paspalhão capaz de se sobressair àquela beleza de cegar os olhos da audiência, sublinhando que beleza (perdão pelo clichê) não é tudo e pode muito bem ser anulada por gente gabaritada em idiotice, como eram esses personagens criados por Silvio de Abreu e Dias Gomes, respectivamente.
Encarou a desconstrução do galã com Dom Jerônimo em “A Muralha” (2000) e Jacinto de Sá Ribeiro no início de “Velho Chico” (2016).
E se estendia a outros olhares, timbres e sotaques, como o memorável Giuseppe Berdinazzi na primeira fase de “O Rei do Gado”, uma das mais belas produções já realizadas pela TV brasileira, em dueto com Antonio Fagundes e parceria com Eva Wilma.
Foram pelo menos 42 novelas e 23 outros títulos para a TV, entre séries e especiais, mais 23 filmes, incluindo duas obras de Nelson Rodrigues: “Boca de Ouro” (1990) e “O Beijo no Asfalto” 1979), onde beija Ney Latorraca na boca. Do dramaturgo, também fez episódios para a boa série “A Vida como Ela É”, dirigida por Daniel Filho para a TV.
A última novela do ator foi “Orgulho e Paixão” (2018), de Marcos Bernstein, da qual ele teve de sair antes do previsto por causa de infecção pulmonar. No ano passado, a Globo encerrou um contrato de exclusividade de 52 anos com Tarcísio e Glória Menezes, e nenhum outro acordo rompido pela emissora com contratados de várias décadas gerou mais debate do que o caso do casal mais querido da TV.
Tarcísio era também a metade da mais sólida fotografia de casal do imaginário brasileiro. Ver Glória sem Tarcísio passa a ser um exercício de permanente sensação de perda, como se a todo momento a imagem dela nos lembrasse que está faltando alguém no retrato.
Casados há quase 60 anos, os dois estiveram juntos em várias produções, inclusive em “2-5499 Ocupado”, pela TV Excelsior, e em um seriado batizado justamente como “Tarcísio e Glória”.
Nesta quinta-feira insuportavelmente cinzenta, Tarcisinho e os irmãos por parte da mãe, João Paulo e Maria Amélia, tiveram de conciliar a dor da perda com a preocupação em contar à atriz sobre a partida de seu parceiro de quase seis décadas. Os dois estavam internados no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, após terem contraído Covid-19, mas ele, com a saúde já fragilizada, foi logo intubado.
Glória já poderia ter deixado o hospital, mas acabou retardando sua saída, preferindo esperar pelo companheiro. Coisa de quem se habituou a encontrar um final feliz nos braços do grande amor, como a história da telenovela se encarregou de contar tantas vezes, tendo ambos como protagonistas por seis décadas.