Globo atropela elegância de praxe ao anunciar saída de Aguinaldo Silva
Três linhas por 40 anos de serviços prestados por um funcionário (ou colaborador, como manda a nomenclatura trabalhista) cioso da liberdade de dizer o que pensa.
Mais do que a audiência ou as questões envolvendo sua última novela, “O Sétimo Guardião”, foi a postura de Aguinaldo Silva, muitas vezes pouco obediente às decisões da Globo, que determinou sua saída da empresa por meio de um comunicado curto e grosso.
Pior do que o tamanho do comunicado foi seu enunciado, atribuindo unilateralmente à Globo a decisão de não renovar o contrato de um de seus maiores talentos, criador de Nazaré (Renata Sorrah), Giovani Improtta (José Wilker), Crô (Marcelo Serrado), Altiva (Eva Wilma), Jorge Tadeu (Fábio Jr.), Cândido Alegria (Armando Bogus), Osnar (José Mayer), Téo Pereira (Paulo Betti), Comendador José Alfredo (Alexandre Nero), pai adotivo da Tieta da TV (Betty Faria) e de sua antagonista, Perpétua (Joana Fomm), responsável ainda por conduzir 90% de um dos maiores sucessos da emissora, “Roque Santeiro”, a partir da sinopse de Dias Gomes, e de uma penca de personagens lendários que habitam o imaginário popular nessas quatro décadas.
A Globo puniu William Waack, José Mayer, Dony de Nuccio e Mauro Naves, recentemente, com quebra de seus contratos (veja bem, não era nem o caso de não renovação, mas de um rompimento mesmo), com um texto muito mais elegante, atribuindo essas decisões a um comum acordo entre as partes envolvidas. Nunca houve, pela voz dos comunicados assinados pela emissora, um aviso que tropeçasse tanto na elegância e dignidade que se espera de um casamento de mais de quatro décadas e muitos pontos de audiência.
Nos últimos dois anos, entre os mais de vinte jornalistas que mereceram um comunicado da emissora, não houve só um caso em que o texto não atribuísse a saída a uma decisão em comum ou do próprio “demitido” (e aqui aplico as aspas como um sinônimo da não renovação de contrato, já que se tratavam de Pessoas Jurídicas e não de sistema via CLT, o chamado Contrato por Legislação Trabalhista). Mesmo aqueles que foram dispensados mereceram uma nota simpática para um fato aparentemente negativo: ser dispensado.
O divórcio pode até trazer dias melhores, mas não é de bom tom sair por aí dizendo que foi você quem deu o pé no traseiro do outro. Para os grandes, é uma atitude desnecessária, mesquinha, que soa como ressentimento. Faltou ao entretenimento da Globo a maturidade e a diplomacia que tem sobrado ao jornalismo em questões similares.
Paulo Ubiratan, morto em 1998, notório diretor de dramaturgia da Globo, responsável por muitos sucessos da emissora, incluindo todas as novelas de Aguinaldo Silva até ali, dizia que um sujeito pode acumular uma pilha de méritos ao longo de sua existência. Bastará um passo em falso, um erro apenas, para ser lembrado por ele.
Dono de duas estatuetas do Emmy (“Laços de Sangue”, coprodução da Globo em Portugal, e “Império”), embora a Globo tenha mencionado apenas esta última no comunicado de três linhas, Aguinaldo Silva nunca escreveu uma novela que flopasse, como aconteceu com sua última obra, “O Sétimo Guardião”. Foi uma produção que deu grande dor de cabeça à Globo desde bem antes de ir ao ar, em função de processos judiciais de ex-alunos do autor que reivindicavam a coautoria da história, cuja sinopse nasceu de um curso de roteiro ministrado por Aguinaldo.
Ele chegou a sugerir que esquecessem aquela trama e fizessem outra, mas o diretor do núcleo de teledramaturgia, o também autor Silvio de Abreu, resolveu apostar na história, assegurando que ela era ótima.
Há quem atribua parte do “fracasso” (e aqui uso aspas porque estamos no contexto da Globo, cujas novelas geram uma repercussão muito maior) à tentativa de Aguinaldo de remexer em alguns conceitos da sinopse original.
Já houve fracassos maiores, é verdade, mas a Record, na época, nem incomodava, como aconteceu nos tempos de “Babilônia” e “A Regra do Jogo” com “Os Dez Mandamentos”.
Tampouco se sustenta o argumento da dispensa, expresso nas três linhas do comunicado, de que o contrato não será renovado por falta de uma sugestão de nova obra. Há autores que há tempos tentam emplacar uma nova novela ou minissérie, sem terem seus contratos encerrados por falta de interesse da emissora em suas histórias. Há ainda a prática do caminho inverso, como acontece com mais frequência, em que a Globo, interessada no autor, encomenda novas tramas.
Consta que a rusga entre o autor e sua contratante se acentuou no quesito das relações pessoais. Assim como aconteceu com o diretor Luiz Fernando Carvalho, que está fora da Globo desde 2017, após o fim da exibição da minissérie “Dois Irmãos”, Aguinaldo não cedeu às recomendações da emissora em vários aspectos: escreveu por sua intuição, sem se render a supostas verdades resultadas dos grupos de discussão que a Globo promove, e há tempos vem falando o que pensa, mesmo quando suas ideias distinguem-se das decisões da emissora, como o caso da dispensa de José Mayer, que ele insistiu em trazer de volta à tela e a quem defendeu publicamente.
Mayer foi afastado sob a acusação de assédio sexual à figurinista Su Tonani.
O contratado tem todo o direito de dizer o que pensa, assim como a empresa tem absoluta liberdade para decidir como lidar com seus contratados, mas é sempre bom lembrar que pesam aí o ônus e o bônus. Há os que falam o que querem mas, com alto faturamento, são poupados pela direção, e assim o serão enquanto trouxerem mais lucros do que perdas. Há os que falavam o que queriam, mas foram cortados por já não representarem melhor o lado positivo do que o negativo nos negócios. Isso vale para apresentador, autor, ator ou jornalista de vídeo.
Nos tempos em que SBT, Manchete ou Record tinham disposição financeira para investir em novelas, os autores do naipe de Aguinaldo eram mantidos sob contrato a peso de ouro pela Globo. Outros, menos desobedientes e já fragilizados por saúde e idade, continuam mantidos pela casa.
A Netflix, a Amazon e outras plataformas e canais pagos vieram ocupar um espaço de concorrência à Globo, sem, no entanto, ameaçarem sua produção de novelas. E por mais que se cultuem as séries, a verdade é que é mais fácil e barato encontrar quem escreva roteiros seriados em poucos capítulos do que quem se atreva a conduzir mais de 100 episódios diários na TV aberta.
Da mesma forma, as novelas, embora ainda sejam o grande carro-chefe da liderança da Globo, já não têm nesse contexto a singularidade que tiveram até uma década atrás.