Inspirada na trajetória de Abdelmassih, ‘Assédio’ é divisor de águas na TV brasileira
Nesta sexta, dia 21, a Globoplay põe no ar, só para assinantes, os dez episódios de “Assédio”, minissérie de Maria Camargo, livremente inspirada na trajetória do médico Roger Abdelmassih (por meio do livro “A Clínica: A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih”, de Vicente Vilardaga). Trata-se de uma produção que só foi adiante após passar pelo crivo do departamento jurídico do grupo, que também orientou seu desenvolvimento.
Afinal, era o caso de se certificar de que o personagem inspirador da série, médico especializado em reprodução humana que abusava e estuprava suas pacientes, não poderia se sentir ofendido e processar a emissora ou impedir a exibição do produto.
No contexto das cinebiografias negativas, gênero já bastante explorado em outros países, o Brasil é absolutamente iniciante. E é nesse ponto que se pode atribuir a “Assédio” o papel de divisor de águas no conteúdo audiovisual nacional. Para levar a produção adiante, a Globo se calçou basicamente numa questão: Abdelmassih foi condenado pela Justiça. Se estivesse ainda acusado, respondendo a processo, “Assédio” não teria ido em frente.
“É uma escolha corajosa da TV Globo, esse é um dos maiores méritos do projeto, a meu ver, e aproveito para agradecer a Maria (Camargo), ao Silvio de Abreu e à Monica Albuquerque, que confiaram na realização do projeto”, disse a diretora artística Amora Mautner.
A TV brasileira sempre relutou em retratar algum personagem de modo que não fosse exatamente um tributo. Mesmo na hora de biografar uma personalidade, as emissoras pisaram em muito ovo para omitir os defeitos e enaltecer as qualidades do personagem ungido a protagonista. Até Juscelino Kubitschek, figura à qual o grupo Globo se opôs durante seu mandato presidencial, pareceu um santo na minissérie produzida em 2006, com texto de Maria Adelaide Amaral.
Expert em biografias vistas por meio de minisséries, Adelaide sempre procurou pessoalmente as pessoas (ou herdeiros de) citadas em suas séries, tendo, por diversas vezes, esbarrado em vetos – em “Dercy”, por exemplo, ela não pode mencionar o nome de Walter Clark como responsável pela demissão da comediante da Globo, a pedido da família.
Mas isso também se dava antes que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubasse a censura a biografias, em decisão proferida há três anos. Hoje, se o Roberto Carlos quiser vetar um livro sobre sua história, só poderá fazê-lo após a publicação e se o juiz responsável por avaliar o caso concordar com ele.
No caso de Abdelmassih, como já foi dito, a condenação na Justiça garantiu a realização da série.
“A gente usou um livro reportagem como ponto de partida”, argumentou Maria Camargo. Ela explica: “Desde o princípio do projeto, quando apresentei a ideia, sabia quer teria que ser ‘livremente inspirado em’. A gente parte da vida real, mas o resultado final disso não é vida real, é ficção: os nomes foram todos trocados. O Roger é Roger Sadala. A gente chegou a pensar em outro nome, e no final, achou que era interessante usar o prenome, obviamente o sobrenome não precisaria ser o mesmo, mas, ao usar ‘Roger’, a gente não está omitindo, a gente não quer negar esse ponto de partida, e os créditos do livro estão lá na abertura. O caso é que ele foi realmente um condenado da Justiça. Isso é que permitiu que fizéssemos a série.”
A autora conta que o departamento jurídico orientou a equipe desde o princípio. “A gente partiu de uma história real e buscamos o simbólico disso. A gente está fazendo é ficção, com uma linguagem própria, e mesmo que estivéssemos fazendo um documentário, haveria uma linguagem para isso. Mas, como ficção, podemos radicalizar e inventar sobre a vida íntima dessas mulheres, todas com outros nomes.”
O time de roteiristas contou ainda com uma especialista: advogada de formação, a pesquisadora Eduarda Azevedo teve presença fundamental em todo o processo de escrita do texto. “A Duda participou de todas as reuniões. A gente tem uma liberdade responsável: o que podemos inventar ou não? Porque a história tem uma âncora na vida real, mas eu não posso inventar um crime que não foi cometido, não posso mostrar uma cena em que ele vai enforcar uma dessas mulheres porque nunca ninguém disse isso, é um limite ético, isso não poderia ser feito. A gente ficou a cada passo se perguntando qual era a implicação de cada ato”, completa Maria.
Presente na apresentação que a Globo promoveu da série num auditório dos Estúdios Globo, nesta segunda, 17, Eduarda sustentou a argumentação da autora: “A série é livremente inspirada em fatos reais e os fatos reais danosos a pessoas conhecidas são fartamente publicizados. A gente não atribui nenhuma responsabilidade negativa que não tenha sido não só efetivamente comprovada, como crimes que ele de fato cometeu, da forma como foram descritos.”
Para Eduarda, “trata-se do relato de uma história que é negativa”, mas realizada sob o “aval de que não devemos esquecê-la”. “Penso também que há uma tendência de mercado internacional de retratar crimes reais e se apropriar deles, transformar essas narrativas jornalísticas em horas de ficção. Toda a violência que está retratada na série foi cometida, mas não exatamente dessa forma. Tivemos esse cuidado o tempo todo.”
A “tendência internacional” a que se refere Eduarda só reforça a estranheza de nunca termos avançado sobre esse terreno. Há exatos dois anos, “American Crime Story: The People v. O.J. Simpson” venceu o Emmy Awards, e veja que o Simpson da vida real, diferentemente de Abdelmassih, sequer foi condenado. Ex-jogador de futebol americano e ator, ele foi acusado do assassinar sua ex-mulher, Nicole Brosn, e seu amigo, Ronald Goldman, em 1994, mas foi absolvido após longo julgamento, amplamente retratado pela imprensa.
Não é de hoje que roteiristas e biógrafos recorrem ao exemplo norte-americano para buscar mais liberdade na hora de contar a história de personalidades públicas. Em 1993, a extinta TV Manchete teve de lidar com o prejuízo de jogar fora um razoável volume de produção já gravada da minissérie “O Marajá”, com Alexandre Borges e Júlia Lemmertz.
Sátira baseada na trajetória do ex-presidente Fernando Collor de Mello, ejetado da cadeira no ano anterior, “O Marajá” foi vetada na Justiça a pedido de Collor. Embora o Congresso tenha votado por seu impeachment, por acusações de corrupção, Collor não esperou pelo endosso da votação e renunciou ao cargo. Na época da série, ele ainda não havia sido julgado pelos crimes de que era acusado, e viria a ser mesmo absolvido anos mais tarde.
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