Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Joga água nele!’: Um adeus a Zé Bettio, despertador de várias gerações

Um dos raros retratos de Zé Béttio, radialista que fez fama nas Ondas Médias / Reprodução

Ele era avesso a telas, foco deste noticiário. Mas, sendo o rádio o princípio da nossa TV, não há como permitir que sua memória seja aqui ignorada: morreu na madrugada desta terça-feira, aos 92 anos, o mais discreto entre os maiores comunicadores brasileiros. Ao longo de pelo menos cinco décadas à frente do rádio, Zé Bettio acordou várias gerações em São Paulo.

“Acordou” mesmo, não é força de expressão. Ao lado de um bom sonoplasta que produzia o ruído de uma bacia d’água sendo despejada, repetia bordões como “Olha a hora, gente, olha a hora”, “Joga água nele”, “Acorda, gordo!” Entremeando uma fala e outra, havia burro zurrando, galo cacarejando e boi mugindo, uma autêntica fazenda – outra paixão do radialista.

Avesso a exibir seu rosto, detestava posar para fotos – felizmente, viveu a fama antes da febre da selfie, embora tenha trabalhado até 2009. Vestia-se como o caipira que sempre prezou ser, honrando uma cultura que alimentou  como ninguém pelas ondas médias do rádio, primeiro pela rádio Difusora de Guarulhos, depois pela Rádio Cometa e, finalmente, no auge da fama, pela Rádio Record, onde se destacou como a figura mais popular do rádio nas décadas de 70 e 80.

Pouca gente era capaz de reconhecê-lo em lugares públicos que não fossem sua própria vizinhança, na zona Norte de São Paulo – Zé Bettio morreu dormindo, em sua residência, no bairro do Horto Florestal.

Tive o prazer (e o espanto) de conhecê-lo na finada casa de espetáculos Olympia, na Lapa, em São Paulo, quando fui apresentada a ele por seu filho, Homero Bettio, então empresário de Chitãozinho e Xororó, pouco antes de um show da dupla no local. Era o típico cidadão por quem ninguém daria nada. E, no entanto, escondia sob o anonimato do rosto uma das vozes mais importantes do seu tempo na maior cidade do país.

Chapéu caipira – nada que se aproxime do acessório à moda country que desfila por aí, nessas feiras como Barretos – mantinha o jeito simples, simplista até, com prosa idem. Era o retrato de alguém aparentemente muito modesto.

O radialista argumentava que preferia manter a magia do rádio, deixando que as pessoas pudessem imaginar seu rosto. Mas, para além desse argumento, morria de medo de ostentar a riqueza acumulada pela fama e criação de gado, despertando a cobiça de criminosos. Seu irmão, o músico e compositor Arlindo Bettio, foi assassinado por ladrões em outubro de 1980.

Foi Zé Bettio quem botou para tocar a música que se tornaria o primeiro hit sertanejo na programação urbana do rádio paulistano, “Fio de Cabelo”, canção que traria fama e fortuna a Chitãozinho e Xororó, puxando uma fila de outros pares do gênero nos anos seguintes, como Leandro e Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano e João Paulo e Daniel.

Até o início da década de 80, música caipira só tocava no rádio, em São Paulo, quando caía a madrugada. Zé Bettio trouxe o gênero para a luz do dia, sendo também responsável pelo sucesso de Milionário e José Rico.

As crianças e jovens de hoje podem não acreditar, mas houve um tempo em que o mundo viveu muito bem sem celular – até sem telefone, dizem, o que eu não cheguei a testemunhar, mas acredito. E um tipo de despertador que reinou heroico, na era pré-celular, era o rádio-relógio, um aparelho que emitia som de alarme, mas também o áudio da rádio selecionada.

Em casa, o troço sempre começava a berrar já com o Zé Bettio mandando jogar água na gente. Diante da nossa resistência, minha e de meu irmão, Adriano, vinha mais ladainha – “olha a hora, olha a hora, a hora não espera… Joga água!” Xpá, vinha o sonoplasta. Algumas canções eram especialmente capazes de suspender nosso sono, tamanha a irritação que nos provocavam. “Seu” Irineu, pai nosso, divertia-se com a “tortura”, hoje mote de nossa boa memoria afetiva.

 

De todo modo, temos muito a agradecer a ele pelos compromissos honrados na hora certa.

Zé Bettio começou a vida como sanfoneiro em um “conjunto”, como se dizia na época (Silvio Santos usa esse termo até hoje) Sertanejos Alegres. Também ostentou outro grupo, “Zé Bettio e seu Conjunto”. Tornou-se locutor por acaso, ao ler um anúncio na rádio Difusora de Guarulhos, substituindo alguém que havia faltado. Foi um sucesso.

O que torna sua trajetória ainda mais brilhante é o fato de que Zé Bettio falava em tom conversado, uma moda mais atual do que dos anos passados. Dispensava a empostação de voz que fazia a fama de outros radialistas da época. Vamos falar a verdade? Ele tinha até uma linguinha presa e uma dicção longe do desejável nível técnico. Pois era justamente a capacidade de parecer ser nosso vizinho ou um avô afeito à genuidade do campo que tanto encantava as pessoas.

Abaixo, uma mostra de seu programa nos anos 80/90, pela Record:

 

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Cristina Padiglione

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