Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Justiça’ é a melhor coisa que a TV brasileira já fez

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Do texto à direção, passando pela performance dos atores, fotografia, figurino, maquiagem, cenários e trilha sonora (ah, a trilha! Teve Fagner, Chico, Zé Ramalho, Zizi Possi e ‘Pedaço de Mim’, Milton, ‘O que será que será’…), tudo esteve em seu devido lugar em ‘Justiça’, série que se encerrou há pouco e que se traduz na melhor das melhores produções que a televisão brasileira já realizou ao longo de seus 66 anos. Vá lá que uma série jamais há de competir em pé de igualdade com uma novela, pela inevitável narrativa de extensão que um folhetim exige, em detrimento de toda a concentração dramática permitida a um formato seriado, em poucos episódios.

De Manuela Dias, autora que está apenas em seu segundo trabalho solo (o primeiro, uma adaptação de ‘Ligações Perigosas’, foi ao ar em janeiro) e direção final de José Luiz Villamarim, ‘Justiça’ primou por diálogos precisos, envolventes, comoventes, câmera posicionada do ponto de vista do protagonista de cada história, sem ocultar seus coadjuvantes, sem malabarismos, sem pretensões revolucionárias. A perspectiva sempre foi, como disse o diretor por diversas ocasiões, a mais realista possível, quase documental. Coisa de fazer o telespectador se esquecer de ir ao banheiro, de atender ao telefone, de responder a qualquer outro chamado que não viesse da tela, como se pudesse dispor da dedicação do espectador isolado do mundo, digno das salas de cinema. Até tuitar foi difícil, tamanha a resistência que se tinha em desviar os olhos daquele foco.

Casado com a alcoólatra Vânia (Drica Moraes), o político Antenor (Antonio Calloni) cruzou o caminho do contador Maurício (Cauã Reymond), ao atropelar e não socorrer sua mulher, Beatriz (Marjorie Estiano), e foi então que Maurício reforçou seus laços com Celso (Vladimir Brichta), que se envolveu com Kellen (Leandra Leal), que por sua vez estragou a vida da família de Fátima (Adriana Esteves), vizinha de Douglas (Enrique Dias), policial que também foi casado com Kellen e mudou a vida de Rose (Jéssica Ellen), namorada de Celso e filha de empregada doméstica na casa de Débora (Luísa Arraes), moça obcecada por encontrar o canalha que a estuprou, irmão do boa praça Firmino (Júlio Andrade), que se apaixonou por Fátima, a mesma que era empregada de dona Elisa (Débora Bloch), cuja filha (Marina Ruy Barbosa) foi assassinada por Vicente (Jesuíta Barbosa), cujo pai (Luiz Carlos Vasconcelos) foi passado para trás por Antenor, marido da alcoólatra vivida por Drica Moraes, que se envolveu com Maurício, seco por vingança pela tragédia que vitimou sua mulher, etc. etc, etc.

Poderíamos escrever mais dez linhas cruzando protagonistas e coadjuvantes, coadjuvantes que por vezes eram apresentados como protagonistas e vice-versa, em quatro capítulos semanais ao longo de 20 episódios. Como bem disse Manuela Dias à ‘Folha’ em entrevista publicada nesta sexta, 23, “na vida do taxista, os figurantes somos nós”. Estudante de grego arcaico desde os 18 anos, Manuela traçou, em entrevista que fiz com ela na ocasião do lançamento da série, fortes conexões entre as tragédias gregas e as histórias contadas em ‘Justiça’.

A exibição de ‘Justiça’, que nesta última semana coincidiu com a estreia de ‘Supermax’, outra produção em que a Globo investiu grandes esforços de narrativa e tecnologia, endossa que o que o público quer, sempre e sempre, acima de tudo, é uma boa história, bem contada. Pode ter efeito especial e que tais, mas, sem comoção, sem os dramas humanos, a audiência não comparece em peso. ‘Justiça’ teve o raríssimo mérito de combinar audiência com qualidade. E nos mostrou, com Recife escancarado na tela, uma vida como ela é que se antecipa às tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, fincadas justamente nas tragédias gregas.

fatima

Como disse João Paulo Dell Santo no Facebook, palmas (e o Tocantins inteiro) para Manuela Dias, o que estendo ao Villamarim, Débora Bloch, Adriana Esteves, Cauã Reymond, Drica Moraes,Enrique Dias e Jesuíta Barbosa, gênios absolutos, ainda que nenhum ator ou figurante tenha se saído abaixo do crível e do incrível. Que venha uma segunda temporada, com outras histórias.

Numa das últimas cenas, Antenor e Maurício travam o seguinte diálogo:
“Rapaz, eu não matei a minha mulher e você matou a sua. A Vânia escorregou pela sacada do hotel, eu nem encostei nela!”
“Pra você ver como é a justiça. Você cometeu vários crimes e vai ser preso por uma coisa que você não fez”

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Cristina Padiglione

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