Liberado na Irlanda e (quase) na Argentina, aborto já foi mais bem discutido em novela
Evidência do retrocesso que marca o debate nacional sobre questões prementes, o aborto já foi mais bem discutido em novela há 30 anos – e muito mais – do que é hoje, no mesmo gênero.
Em “Bebê a Bordo”, novela de Carlos Lombardi de 1988, recém-encerrada pelo Viva, e infelizmente bastante picotada por cortes de edição, Sininho, personagem de Carla Marins, diz a Rei, vivido por Guilherme Fontes, que pensou em se jogar de uma escadaria para abortar o bebê que espera, a exemplo do que fez Maria de Fátima Acioli (Glória Pires) na novela “Vale Tudo”, exibida mais ou menos na mesma época. Abre-se daí um diálogo sobre a questão.
De lá para cá, poucas são as menções sobre aborto nos folhetins, e sempre que elas acontecem, são para olhar o tema como algo a se recriminar, nunca de forma propícia à reflexão, como vimos no capítulo desta sexta de “Segundo Sol” – Karola (Deborah Secco) diz a Beto (Emílio Dantas) que nunca lhe contou sobre o filho que Luzia (Giovanna Antonelli) esperava dele porque ela, na verdade, tentou abortar a criança. O relato é feito sob o olhar de horror de Karola, para a tristeza de Beto.
Em “Liberdade Liberdade”, Zezé Polessa acusou a direção da novela de cortar uma fala de sua personagem, Ascensão, uma espécie de bruxa, que consolava uma grávida amargurada pelo peso de consciência de ter pensado em abortar e “matar” seu filho”. Ascensão responderia que não se pode matar o que não nasceu. Essa fala, segundo ela, foi cortada. Assim como muita gente discorda da recriminação presente em cada cena em que o aborto é mencionado, muitos concordariam com Ascensão, mas esse é um pensamento que sempre fica de fora das novelas, produto de maior êxito na comunicação de massa deste país.
Em “Passione” (2010), de Silvio de Abreu, Fátima (Bianca Bin) engravidou do namorado, que não apoiava a sua gestação e, por isso, recebeu a dura decisão de abortar o bebê. Desesperada, ela consegue o endereço de uma pessoa que pode realizar o procedimento – que é feito sem as mínimas condições de higiene e, assim, vai parar na UTI sofrendo as consequências da falta de condições sanitárias em que foi submetida ao aborto.
Em “O Outro Lado do Paraíso (2017), de Walcyr Carrasco, também é mencionado um aborto feito no passado, em péssimas condições, por Lívia, personagem de Grazzi Massafera, que embora tivesse dinheiro para procurar uma clínica melhor, fora submetida a tal procedimento pela mãe que não era mãe, a malvada Sofia (Marieta Severo).
E ainda lá atrás, o que não era novela, mas era um seriado de grande alcance para a audiência, “Malu Mulher” trazia um episódio em que Jô, personagem de Lucélia Santos, fizera um aborto.
É evidente que ninguém sairia da clínica de aborto dando saltos de alegria. Não é uma situação confortável, mas o tom adotado na dramaturgia é cada vez mais de quem carrega um grande peso na consciência. É cada vez mais raro discutir o tema sob o aspecto de saúde, como aconteceu em “Passione”, ou sem a leitura religiosa, como tentou fazer Mario Teixeira em “Liberdade Liberdade”.
Na releitura de Ricardo Linhares para “Saramandaia”, em 2013, um bom diálogo defende a legalização do aborto e os riscos por que passam as mulheres sem recursos que escolhem não levar a gravidez adiante.
Segundo dados do Ministério da Saúde de 2016, 4 mulheres morrem por dia no Brasil, em consequência de abortos mal feitos.
Em tempo
“Bebê a Bordo” tem ótimos diálogos para instigar a reflexão e ampliar o repertório. Pena que o Viva tenha cortado tanto a novela, mas ela ainda está no Viva Play, via streaming, em sua versão na íntegra, para assinantes.
(Colaboração de pesquisa: Wesley Vieira)