Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Nos 40 anos de ‘Malu Mulher’ descobrimos que Regina Duarte não entendeu nada

A lendária Malu Mulher, tão distante de sua intérprete.

Seriado de bandeira feminista que foi vanguarda até no exterior, apresentando uma mulher que não tinha de se submeter aos desmandos do marido nem abdicar de seus anseios profissionais para ser boa esposa, boa companheira e tal, “Malu Mulher” fez história há exatos 40 anos, na TV Globo.

Por obra da efeméride, Pedro Bial conversou com sua protagonista, a atriz Regina Duarte, que, antes que me entendam mal, tem todo o direito de declarar medo, voto e confiança em quem ela bem entende. Isso, por mais adversas que sejam as opiniões ao seu redor no meio artístico, é democracia, como bem enalteceu Bial, ao citar o respeito a quem pensa diferente de você.

A questão é que Regina não entendeu nada do que estava fazendo ali há 40 anos, como deixa claro em alguns momentos da entrevista.

Quando Bial lhe pergunta “Você ainda se declara uma feminista?”, ela responde: “Não, eu nunca fui feminista, mesmo fazendo Malu, eu achava que não era por aí, que tinham caminhos intermediários, tinha que negociar mais, não podia se afastar do homem, não podia tomar posturas machistas e aconteceu muito isso.”

Alô, Regina, feminismo não significa se “afastar do homem”, nunca significou. O próprio texto de “Malu Mulher”, até onde a minha memória alcança o repertório do seriado, nunca botou as coisas nesses termos.

A ideia era lembrar que você é metade da relação, senão mais, mas que não pode ser menos que isso.

A ideia era deixar claro que você, mulher, também tem seus anseios profissionais, que fez os filhos, ou não, de acordo com a sua vontade, na mesma proporção (aliás, em proporção até maior, dada a gestação, no caso de filhos biológicos) que o homem, e que ele tem de participar das obrigações domésticas nas mesmas proporções que você.

Isso é o básico. Há muitas outras divisões de tarefas e equidade por trás dessas premissas, mas nenhuma delas prevê afastamento do homem (ainda que você encontre mais prazer em uma relação com outra mulher, o que vem a ser outra bandeira) nem posturas machistas.

É doloroso lembrar como “Malu Mulher” fez história e mexeu com tanta gente que ali pode se espelhar e passar a pensar, e ver, 40 anos depois, que sua intérprete via a coisa de modo tão distorcido, inclusive começando a achar, já no final da produção, que aquela Maria Lúcia estava se tornando “uma chata”, ela diz, “uma coisa que eu nunca quis ser”.

Pena. Não foram poucas as mulheres que, refletidas nela, quiseram ser Malu. E ela mesma, agora sabemos, nunca quis.

Mas, vejamos pelo lado bom? É boa atriz, vá? Alguém que hoje se mostra contrariado naquele discurso, comovendo tanta gente, só pode ter vocação para o ofício em questão.

Mais adiante, quando Bial fala sobre aborto, Regina mostra, de novo, que não está entendendo nada, como diria a letra da canção de Caetano. A atriz fala sobre aborto com a preocupação de que o governo possa alertar “adolescentes” em momento de “entusiasmo hormonal” para os riscos de gravidez precoce. Regina fala da pílula do dia seguinte, fala das prevenções, mas não consegue tratar do assunto após o “fato consumado”, como reforça Bial, em vão.

E as mulheres de 20, 30 ou 40, pós e bem pós-adolecentes, que engravidaram e, por algum motivo, não querem aquele filho? Bem, isso não está em jogo nas reflexões que Regina faz sobre o assunto. O debate se encerra na questão da imaturidade. É como se as mulheres em tese já cientes dos riscos e consequências de uma relação inconsequente ou simplesmente vítimas de um acidente não pudessem decidir sobre o seu corpo e o destino de ter ou não um filho.

Para mais uma decepção, a atriz se sente envergonhada diante de uma cena selecionada pelo programa em que Malu lindamente tem um orgasmo. Francamente, tudo o que as mulheres não precisam hoje é de uma mulher envergonhada por gozar.

É bem verdade que se trata de alguém coerente. Ou mais ou menos coerente. Perguntada se é conservadora, sim, assume que é.

Mas, ao discursar sobre o incentivo fiscal que o governo poderia dar apenas aos artistas em início de carreira e à rigorosa prestação de contas exigida pela Lei Rouanet, ela não diz, e nem Bial pergunta, se ela já fez teatro com ajuda da Lei Rouanet.

Sim, fez, e não há crime algum nisso. Consta inclusive que seu salário, na planilha de gastos consumidos pelo espetáculo, não era modesto, como cabe a uma estrela de seu tamanho. Por que não falar de que modo isso pode ser aplicado e relatar um pouco de sua experiência?

No oba-oba promovido por Bial, no entanto, Regina ouve dele que “se ainda tivesse ministério da Cultura, você podia ser ministra, mas não tem mais ministério da Cultura”, reforça, numa manifestação de fina ironia.

Mas, na boa, se ela não puder falar francamente sobre Lei Rouanet ou sobre o balanço dos cinco primeiros meses do novo governo, a gente esquece tudo e pede apenas que se pense melhor sobre o que quer dizer feminismo.

Seria mais interessante rever Malu Mulher com os olhos de uma intérprete mais consciente, ainda que fosse conservadora.

 

Malu Mulher foi seriado escrito por Armando Costa, Lenita Plonczynski, Renata Palottini, Manoel Carlos e Euclydes Marinho. A direção era de Daniel Filho, Paulo Afonso Grisolli e Dennis Carvalho, também protagonista, com direção-geral de Daniel Filho. Em 76 episódios, o seriado semanal foi ao ar entre 24/05/1979 e 22/12/1980 .

 

P.S. Alguns dos comentários sobre este texto tentam apontar que a autora estaria exigindo da atriz um posicionamento feminista. Sobre isso, só posso dizer que os leitores que assim interpretaram este post tampouco entenderam do que estamos falando. A questão é a leitura equivocada que a atriz faz do feminismo, e não a obrigação de comprar a personagem, o que, reconhecemos, não orna com seu histórico de namoradinha do Brasil. (Atualização em 04/06, à 01h13)

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Cristina Padiglione

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