Nova produção das onze na Globo, ‘Os Dias Eram Assim’ é de tirar o sono
Pela primeira vez em cinco dias, ou desde que a lista do ministro Edson Fachin se tornou pública e uma série de vídeos com depoimentos de dirigentes da Oderbrecht tem feito cair o queixo de todos nós, não havia ficção capaz de embalar a atenção desta escriba. Em 39 minutos, num único capítulo de “Os Dias Eram Assim”, o mundo à volta perdeu chão, a taquicardia veio à tona e a atenção se reteve nesse enredo alinhavado em bons diálogos e conflitos, obra das estreantes Alessandra Poggi e Angela Chaves, com direção precisa de Carlos Araújo.
À parte todos os itens que levam um crítico a analisar tecnicamente o valor estético e do conteúdo, o que mais pesa, diante de uma primeira página, de um primeiro episódio ou de um filme de volume único é o fato de aquela história nos fazer embarcar ou não para outro universo. Emociona? Então vale. Só os insensíveis não se afetarão com “Os Dias Eram Assim”, nova novela das onze da Globo (tratada pela casa como “super série”, termo do qual me permito discordar), que estreia nesta segunda, logo após “A Força do Querer”, lá pelas 22h e pouquinho, mas já disponível para assinantes na Globo Play.
O ponto alto da taquicardia, no meu caso, foi o socorro a uma grávida (Monique/Letícia Spiller) no hospital onde o protagonista, Renato (Renato Góes) dá plantão, em pleno dia de final da Copa de 1970. Não é socorro, em si, que aflige, mas o que vem a seguir. O cunhado da vítima, Arnaldo Sampaio (de novo temos Antonio Calloni no papel do escroque), chega ao hospital, julga o médico, jovem, pela idade, ouve o parecer sobre a mãe do bebê, que teve uma complicação pós-cirúrgica e está em recuperação, e determina que ela seja transferida para um hospital melhor, com “os melhores médicos” deste país. O médico se recusa a autorizar o procedimento, sob risco de comprometer a recuperação da paciente. “Sabe com quem você está falando?”, a frase clássica da elite mais perversa, aparece então na boca do empresário. É um embate capaz de tirar o espectador da poltrona. O marido da paciente, Marcos Palmeira, em dúvida entre a imposição do irmão e a firmeza técnica do médico, opta pelo parecer médico. Arnaldo chega a dizer ao médico: “Não me importa a sua opinião”. Ao que o outro responde: “Não é opinião, é um parecer médico”.
Dono da construtura Amianto, Arnaldo começara a assistir ao jogo da seleção em sua casa, cercado pelos generais que o ajudaram a fechar um bom contrato entre sua construtora e o governo, naquele mesmo dia. Guardadas as proporções, era a Oderbrecht daqueles dias, e a propina certamente deveria ser algo menor, imaginamos, porque, afinal, não havia eleição e, portanto, ninguém gastava os tubos para bancar campanha política. Mas os conchavos já etão explícitos ali. São do personagem de Calloni algumas das melhores frases para ilustrar o preconceito da alta esfera deste país. Não que aquilo tudo tenha acabado e hoje vivamos na mais perfeita compreensão social, longe disso, mas a verdade é que o sujeito falava o que falava com algum orgulho de fazê-lo em público, ao contrário de hoje, quando a vergonha já acomete quem pensa daquela forma.
Frases de Arnaldo:
_ Francamente, Kiki, que desgoverno, a culpa é sua. (para a mulher, Kiki/Natália do Vale, ao ver a filha Alice (Sophie Charlotte) surgir na sala, em meio a amigos e generais, metida em vestidinho hippie chic de comprimento mínimo, ostentando batonzão vermelho nos lábios)
_ Eu não sabia de nada, responde a mulher.
_ Tinha que saber. Não é a dona da casa?
Outros diálogos expressam a condição da mulher na ocasião. Alice se despe para o namorado (Vitor) e ele a acusa de ser vulgar.
_ Você não me deseja? Aposto que você já transou.
_ Eu sou homem.
_ E eu sou mulher, por que mulher não pode?
Ao constatar que a filha ficou quase nua com o namorado no quarto, a mãe, Kiki, atribui o comportamento da menina à má influência de Leila Diniz, e rasga o exemplar do “Pasquim” (“esse lixo!”) com entrevista da atriz, encontrado no quarto da filha. Alice diz à mãe que ela pode se entupir de calmantes e fechar os olhos, mas “o mundo mudou”. “Mas tem coisa que não muda: os homens!”, responde a mãe.
Outros pontos abordados já no primeiro episódio são a questão racial (a branca Natália/Mariana Lima casada com o negro Josias/Bukassa Kabengele), pais da “mulata” (como diz a personagem de Susana Vieira) Cátia (Bárbara Reis).
O elenco é de uma coesão que só as boas produções alcançam, sem grandes discrepâncias entre as atuações dos atores, indício forte de uma direção minuciosa.
Renato Góes, também Renato em cena, é apresentado como herói da trama apenas pela postura correta e doce (além de salvar a vida da linda Letícia Spiller, claro). De todo modo, não há, no perfil do personagem, nada que soe artificial: é gente como a gente, na melhor leitura de que o bom mocismo está à altura de todos nós.
Se alguém disse que a ditadura é pano de fundo da história, esqueça. A repressão é ponto de partida, gancho dramático, item essencial à trama que começa aqui. As canções da época compõem, com os diálogos, um painel preciso do que acontecia naquele tempo, e o título, “os dias eram assim” é termo extraído da cação de Ivan Lins, “Aos nossos filhos”, entoada pelo próprio elenco da novela na abertura. Em um capítulo, tivemos “Deus lhe pague”, de Chico Buarque, na voz de Elis Regina e do próprio Gustavo/Gabriel Leone, revoltado com a possibilidade de o Brasil ser campeão e virar um trunfo para o governo militar. Tem Secos & Molhados, com a belíssima “Sangue Latino”, trilha para imagens da perseguição policial que permeia o centro do Rio, em busca do parceiro de Túlio/Caio Blat, que explodiu uma bomba no edifício da construtora de Arnaldo. Alice e Renato, o belo casal que se une em meio à celebração do tri, transformada em guerra pela polícia, se beija ao som de “Nossa Canção”, na voz de Roberto Carlos.
As cenas de tortura ainda prometem causar náusea, uma náusea necessária, eu diria, ao espectador. Mas, para primeiro capítulo, bastou ouvir a voz de comando do torturador (Marco Ricca), os gemidos do torturado Túlio e o close na face de Arnaldo colocando lenço na boca para não vomitar. (* a seguir, trecho suprimido, por conter erro)
Já as cenas reais de ruas da época são bem alinhavadas à estética das cenas produzidas agora, e ali não há descompasso entre reconstituição e imagens reais.
E, como digo sempre em casos de produções que resgatam um período histórico (ainda que o caso de “Os Dias Eram Assim” seja apenas a narrativa de um romance naquele contexto, sem pretensão didática): se a coisa não foi exatamente como mostram, ao menos vale para instigar no espectador alguma curiosidade sobre aqueles dias.
(*) Havia dito, no meu texto original, que era “Muito pouco provável que alguém do porte dele, Arnaldo, se sujeitasse a ir até os porões da tortura para assistir a essa cena, mesmo tendo interesse direto na confissão do rapaz, mas aí já é ficção.” Errado. Talvez não fosse uma praxe, mas a leitora Maria Carolina Bissoto me corrigiu sobre a improbabilidade: Henning Boilesen, empresário dinamarquês, chegou a tanto, conforme mostrou documentário sobre ele. Veja só: já temos aqui um bom caso de esclarecimento e aprendizado. Obrigada, Carolina.