Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Novela da Globo trata pedofilia com ação paga: merchan divide coachs e revolta psicólogos

Adriana (Julia Dalavia) fala sobre os milagres do coach em pouco tempo a Clara (Bianca Bin)

Foi um merchandising, ação devidamente paga e creditada como tal no final do capítulo de sexta-feira, dia 2, de “O Outro Lado do Paraíso”, a sequência de cenas que sustenta a possibilidade de se substituir uma terapia psicológica ou psiquiátrica por breves sessões com um coach, profissional que usa técnicas e ferramentas mais “rápidas” para levar alguém ao seu “destino desejado”, ou “de um lugar a outro”, para usar as palavras da advogada Adriana, personagem de Julia Dalavia.

Os conselhos regionais de Psicologia e o Federal emitiram notas manifestando contrariedade ao que chamam de “desserviço da Globo à população”. Os próprios coachs não estão de acordo com o uso do seu ofício nas condições em que a novela de Walcyr Carrasco propõe. Há coachs especializados em áreas diversas, mas a personagem em questão é formada em Direito, embora gabe-se em cena de ter cursado o “Instituto Brasileiro de Coaching (IBC), referência na área”, com “José Roberto Marques, o principal coach do Brasil”.

Em um texto que mais se assemelhou a um panfleto sobre o instituo e seu mentor, Adriana explica que não se trata de uma terapia tradicional, mas de algo possível de ser resolvido de forma mais rápida.

O caso de que Adriana vai tratar diz respeito à personagem Laura, interpretada por Bella Piero, que tem absoluta repulsa por sexo e não entende por quê. Em duas breves sessões com Adriana, segundo reza a previsão de cenas para esta semana, a menina se lembrará de que era abusada pelo padrasto, Vinicius (Flávio Tolezani) quado criança.

“É consenso no Brasil de que pessoas com sofrimento mental, emocional e existencial intenso devem procurar atendimento psicológico com profissionais da Psicologia, pois são os que tem a habilitação adequada”, manifesta-se o Conselho Federal de Psicologia, em seu site oficial, que continua: “Isso é amplamente reconhecido por diversas políticas públicas, entre elas o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que empregam essas profissionais em larga escala. Mesmo na saúde suplementar, o exercício do cuidado psicológico é reconhecido e regulamentado. Há normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que obrigam os planos de saúde a oferecerem atendimento por profissionais da Psicologia.”

O Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG) também se manifestou, vindo “a público declarar extrema preocupação com os eventuais equívocos de interpretação que possam causar diante da complexidade do tema em questão que é o abuso sexual intrafamiliar e os prejuízos psicológicos que acompanham as vítimas e o adoecimento dessas famílias.”

O próprio texto do Conselho Federal já reconhece a resposta padrão para casos similares, quando a Globo costuma argumentar que se trata de uma obra de ficção. O que o órgão talvez ainda desconhecesse quando se manifestou é que este trecho da ficção foi devidamente pago, em caráter de merchandising, o que fragiliza a explicação de que toda semelhança com a realidade é mera coincidência.

A informação de que o IBC pagou por merchandising no capítulo de sexta-feira veio acompanhada, aliás, na mesma tela em que a emissora veicula sua defesa de praxe (“Esta é uma obra coletiva de ficção baseada na livre criação artística e sem compromisso com a realidade”).

Está claro que se não houvesse, nesse caso, qualquer compromisso com a realidade, não teríamos o nome de um coach da vida real citado no diálogo entre Dalavia e Bianca Bin (a mocinha Clara). Tampouco o IBC é uma sigla fictícia para se enquadrar nesse diagnóstico.

Não é incomum que profissionais de vários segmentos se sintam mal representados por obras de ficção, ainda mais quando a vitrine é gigantesca, como é o caso da Globo. A questão, aqui, não custa endossar, é que toda a controvérsia parte de uma ação paga, dentro de um campo que afeta a saúde mental. É uma área muito delicada para ser tratada como script publicitário pouco transparente.

Questionada sobre o assunto desde as primeiras horas desta terça-feira, a Globo, por meio de sua assessoria de Comunicação, só enviou uma resposta a este blog por volta das 20h. Nada comentou sobre o fato de o alvo de contestação do episódio ter sido uma ação paga. Como é praxe nessas ocasiões, defendeu o caráter ficcional das novelas, ignorando que um personagem e um instituto da vida real foram nominalmente citados nas cenas. Eis a resposta da emissora:

As novelas são obras de ficção, sem compromisso algum com a realidade. A Globo reconhece a importância de todos os seus programas para discussões e reflexões sobre assuntos de interesse da sociedade e está atenta à responsabilidade que lhe é atribuída sobre todos os temas abordados. O que a novela ‘O Outro Lado do Paraíso’ quer mostrar com o desenvolvimento da trama da personagem Laura é o processo pelo qual passa uma pessoa que precisa de ajuda, recorrendo a diferentes e variadas formas de apoio e terapias, das mais às menos ortodoxas.

É importante reiterar, ainda, a seriedade com que a novela ‘O Outro Lado do Paraíso’ tem abordado, desde a estreia, questões relacionadas a diferentes tipos de abuso e preconceito. Corroborando o compromisso da Globo com a sociedade, está prevista a exibição, ao final de alguns capítulos, de cartela de divulgação do Ligue 100, número oficial para denúncias de violação de direitos humanos.”

 

Confira aqui os manifestos assinados pelo Conselho Federal de Psicologia e pelo Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais.

 

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Cristina Padiglione

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