Novelas também ampliam porte de armas, mas não entre ‘pessoas de bem’
Não foi normal ver dona Fernanda Montenegro, sempre tratada como a Grande Dama, fofa, cabelinhos brancos, repertório transbordando de sabedoria, bancar a pistoleira na novela que a Globo lançou esta semana, às 21h. Em dois minutos, no capítulo desta sexta, 24, sua personagem, dona Dulce, matou três, para morrer, poucos minutos depois. Por essas e outras é que ela concorre a Oscar e deveria ganhar.
Na contramão de dona Fernanda, a matriarca Dulce é sangue ruim. Orgulha-se de ostentar uma família de matadores de aluguel, “pelo nome a zelar”, e faz questão que os descendentes saiam aos seus, honrando o ofício da casa.
Desde segunda-feira, quando estreou, “A Dona do Pedaço” já gastou toda a pólvora cênica que se consumiu em uma década inteira nas novelas. No período em que as regras da Classificação Indicativa atrelavam o horário de exibição à faixa etária sugerida, era impossível desfilar com armas de fogo em profusão nas novelas das nove, mas o veto era ainda mais rigoroso nas novelas das seis e das sete, sob o risco de ver o Ministério da Justiça reclassificar a trama para outro horário, o que poderia comprometer as estratégias de grade de programação e o hábito do telespectador. Assim, por anos a fio, os malvados ameaçaram suas vítimas com facas, tesouras, ou mesmo com revólver, dificilmente acionado nos folhetins.
Não é algo impossível na vida real. Portugal fez uma revolução sem erguer uma arma. Mas, dramaturgicamente, limita bastante o campo de atuação das vilanias.
Desde 2016, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o vínculo entre faixa etária e horário, as chances de consumir drogas, mesmo lícitas, como álcool, e atirar em alguém foram ampliadas. Pelas normas atuais, se um programa for reclassificado para outra idade, sua obrigação é apenas informar o telespectador com aquele selinho que aparece na tela antes de a atração começar. A imposição de mudar o programa de horário caiu.
Assim, o porte de armas na ficção se ampliou na mesma medida da vida real do atual contexto, dado o momento em que o presidente Jair Bolsonaro assina decreto liberando até fuzis -para, em seguida, voltar atrás.
“A Dona do Pedaço” trata de uma família de matadores de aluguel que trava um duelo com outro clã há mais de uma geração, ou desde que um dos seus foi abatido por alguém do outro lado. A matriarca da família de matadores é a orgulhosa criadora do negócio, o que gera espanto na figura de Fernanda Montenegro, e daí ser esse um dos melhores acertos do folhetim de Walcyr Carrasco até aqui.
Mas não se pode dizer, como se alega na vida real, que a ampliação do número de armas em cena atenda à reação à criminalidade. Nem os Ramires nem os Mateus são exatamente gente boa, pessoas de bem, como se habituou a chamar quem clama pelo direito de ter uma arma. No vaivém das mortes matadas por armas de fogo, já se tem notícia de pelo menos sete personagens assassinados em cinco capítulos. A chacina cênica, infelizmente, incluiu dona Fernanda e Luiz Carlos Vasconcellos, dois atores que não se “matam” assim, impunemente, no início da história.
“A Dona do Pedaço” fala diretamente sobre algo que implica a presença de armas em cena. Ainda assim, algumas sequências são pesadas para quem, como a Globo, pretende atender ao gosto médio da população, pensando nas crianças e idosos presentes na sala a essa hora. Quando Vicente (Álamo Facó) apontou a arma para Zenaide (Maeve Jinkings), era de se pensar que ele não apertaria o gatilho à queima-roupa, no meio da praia cheia de banhistas, numa novela-para-família-toda. Erramos. Ele apertou.
A única concessão até agora diz respeito a matar criança. Vicente apenas forja o assassinato da pequena Fabiana (Maria Clara Baldon), que vai se transformar em Nathalia Dill, mas deixa a menina viva. Por muito menos que isso, Ciro Darlan, então magistrado do Juizado de Menores no Rio, vetou a participação de uma criança que, acreditava ele, era submetida a cenas de constrangimento e tensão na novela “Laços de Família” (2001), de Manoel Carlos. Mas, normalmente, sequências como aquela em que Virginia, a outra filha de Zenaide, testemunha o assassinato da mãe, são montadas na edição, sem que a criança tenha contato direto com a encenação.
Em “A Dona do Pedaço”, os gatilhos são histéricos e se movimentam com uma rapidez quase sempre contrariada pela dramaturgia. Ali, não. Como nas chacinas reais, ninguém fica de teretetê na hora de atirar.
Na sexta-feira da semana anterior, a novela “O Sétimo Guardião” também fez seu elenco desfilar com um arsenal de armas no último capítulo, com saldo de um Tony Ramos morto e uma Lilia Cabral pagando de assassina.
É muito tiro para uma semana só, em duas novelas diferentes, com tantas grifes em cena.
Sorte da Globo que o presidente é chegado numa arminha e não pilharia o Ministério da Justiça ou o Ministério Público em busca de arrefecer esses tiroteios em horário nobre de TV aberta feita para a massa.
Que as armas aí façam parte da história é compreensível. Mas é preciso estar atento e forte para não banalizar a exposição de armas em qualquer enredo, sob o risco de ceder ao modelo hipócrita de filtro adotado pelos americanos, que se fartam de pudores nas cenas de sexo, enquanto escancaram deliberadamente sequências de violência.
Deveria ser o contrário. Partindo das criancinhas aos velhinhos, todo mundo um dia vai fazer ou já fez sexo, ou teve ou terá vontade de fazer, em geral de modo saudável, como manifestação de prazer e felicidade. Mas nem todo mundo, ou assim se espera, será forçado a testemunhar um homicídio ou a matar alguém.