Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

O que diria Odete Roitman se vivesse no Brasil atual?

Beatriz Segall em cena com Nathalia Timberg: Odete Roitman e a adorável tia Celina / Divulgação

Após algumas reprises no Vale a Pena Ver de Novo e duas exibições no canal Viva, “Vale Tudo”, novela de Gilberto Braga, escrita por ele, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, chega nesta segunda-feira (20) ao Globoplay.

Significa?

Sim, significa que o assinante do serviço de streaming da Globo poderá visitar Odete Roitman (Beatriz Segall), Maria de Fátima (Glória Pires) e seu michê, César (Carlos Alberto Ricelli) e até a Raquel Acioly (Regina Duarte) quando bem entender. Poderemos listar tranquilamente, com vai e vem no controle remoto, as frases icônicas da novela, um desfile de diálogos afiados e, infelizmente, ainda muito afinados com o nosso tempo.

Mas se Odete nutria o mais profundo desprezo pela mistura de raças de que este país é fruto e fazia valer o poder do dinheiro para comprar pessoas e reputações, o que diria ela diante do Brasil de hoje, onde a ignorância se apresenta em praça pública com tanto orgulho?

O que diria nossa mais icônica malvada (da ficção, bem entendido) ao ouvir um deputado dizer que fritar hambúrguer o avaliza para o cargo de embaixador do país nos Estados Unidos?

Já se pode sentir seu olhar fustigar o chinelão Rider do atual morador do Alvorada e tratar como cafona todo a moldura do quadro em questão.

Em compensação, não lhe faltariam espelhos. As redes sociais e o fácil acesso a uma câmera rapidamente levariam a ela opiniões como a daquela primeira-dama que disse que morador de rua não deve ser alimentado pela ajuda alheia, sob o risco de não mais sair de lá, cômodo que lhe parece a falta de um teto.

Odete encontraria talvez mais eco e compreensão do que em 1988/89, o que nos faz suspeitar que a situação pode ser pior do que imaginou Gilberto Braga há dois anos, quando disse que o país não havia mudado nada em três décadas, referindo-se ao quesito impunidade para relevantes atos de corrupção (para pequenos roubos, como sabemos, não tem erro: ladrão de xampu apodrece atrás das grades, diferentemente do rentável laranjal que se espalha nos setores públicos).

A vilã é um espelho da elite a quem não interessa em nada a redução da desigualdade no Brasil, a fim de manter sua superioridade sem risco de descer do salto, enquanto baba sobre a civilização do primeiro mundo, onde, ironicamente, não há mais espaço para empregados disponíveis 24 horas como o Mordomo Eugênio de Sérgio Mamberti, personagem que batizou um dos primeiros perfis no Twitter em tributo à novela, ainda em 2010.

Foi naquele ano que a trama inaugurou a faixa da meia-noite no canal Viva, recém-criado, e surpreendeu por arrebatar uma nova geração de espectadores para muito além do objetivo de atrair um público atingido pela memória afetiva que a novela de 20 anos antes lhe trazia.

Daí que um pessoal mal familiarizado com ombreiras, mullets e o uso da palavra “transar” sob um significado que se assemelhava ao verbo “lidar” ou qualquer outra coisa que não fosse sexo, se encantou em flertar com um passado que lhe pareceu tão distante e tão próximo.

Em 2018, quando o Viva resolveu revisitar a novela mais uma vez, Gilberto Braga me disse, em ligação telefônica, que a história se mostrava atemporal porque, afinal, o Brasil não havia mudado nada em 30 anos. Era a confissão de uma frustração, não só porque torcemos muito por um país do futuro que ficara no passado, mas porque o autor chegou a demonstrar otimismo em algum momento desse período.

Em 2011, ao criar um genérico de Marco Aurélio (Reginaldo Faria em “Vale Tudo”) na novela “Insensato Coração”, o autor permitiu que Horácio, personagem de Herson Capri, fosse algemado ao tentar reprisar a cena em que o vilão foge do país dando uma banana a este cenário, de dentro de seu jatinho particular. “O Brasil não aceita mais impunidade”, disse Gilberto naquele ano, animado com o trânsito de poderosos produzido pelo escândalo do Mensalão nas dependências da Papuda.

Sete anos depois, no entanto, ele voltaria atrás para dizer que Marco Aurélio novamente fugiria dando uma banana ao país do alto de seu avião particular. “Eu não mudaria em nada o final da novela hoje”, lamentou. Há coisa de um mês, esse episódio serviu de referência para análises sobre a saída do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, do Brasil.

“Vale Tudo” diz a que vem em cada linha de cada personagem, todos bem construídos e desfilando de modo a contemplar todos os coadjuvantes e tramas paralelas. A letra de Cazuza, com Gal cantando “Brasil” (“mostra a tua cara / quero ver quem paga / pra gente ficar assim/ Brasil, qual é o teu negócio?/ O nome do teu sócio ? Confia em mim”) se reflete em cada diálogo.

A premissa da novela é a pergunta “vale a pena ser honesto no Brasil?”. Mesmo que essa questão fosse ponto superado, ainda assim “Vale Tudo” continuaria sendo um menu que vale muito a pena ser visto. É uma aula, ou melhor, um cursinho intensivo, de Brasil, com suas notas de empáfia, preconceito e ressentimentos, em pleno ensaio do retorno do brasileiro às urnas para escolher presidente após 29 anos de jejum.

E a pedagogia, no caso, vem embalada em pacotão de puro entretenimento, o que só aumenta a eficácia para promover a tal da consciência coletiva.

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