Boni sobre seu tempo na Globo: ‘Na minha sala, nunca chegou um caso de reclamação de assédio’
Mais de vinte anos depois de deixar o principal posto de comando da TV brasileira, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ainda se mostra alguém sem par na competência para traçar diagnósticos sobre o veículo. Aliás, quando lhe perguntam quem poderia compor uma equipe de trabalho com ele hoje, o ex-todo-poderoso da Globo só lembra de colegas que já se foram.
O Roda Viva desta noite (14), na TV Cultura, trouxe Boni, como entrevistado, sob o pretexto de celebrar os 70 anos da TV no Brasil. Peça principal na santíssima trindade que levou a Globo à liderança absoluta de audiência (ao lado de Walter Clark e Joe Wallach), Boni respondeu de forma sucinta sobre o efeito do streaming na TV, a guerra de Jair Bolsonaro contra o jornalismo, a excelência da intuição sobre as pesquisas e até sobre assédio, item que hoje ocupa boa parte dos compliances das empresas com denúncias que também atormentam os bastidores da Globo.
Em resposta a Joyce Pascowitch e Vera Magalhães, o ex-vice-presidente de Operações da Rede Globo assegurou que jamais recebeu em sua sala qualquer queixa sobre assédio, moral ou sexual. “Na minha sala, nunca chegou um caso de reclamação de assédio”, disse.
“É inaceitável qualquer processo de troca, de trabalho, de emprego, de posicionamento, por qualquer motivo, dinheiro, sexo, é inaceitável.”
Embora a bancada de entrevistadores tenha sido de amigos, como ele mesmo enfatizou no início do programa, dizendo que estava “em casa”, boa parte das perguntas que deveriam ser feitas, de modo geral, foi feita.
De tão exigente que era como chefe de operações na Globo, Boni gerava algumas anedotas, como a história de alguém que um dia teria lhe apresentado o filho, ouvindo o chefe reagir da seguinte forma: “Uma bosta, faz outro”. Tudo tinha de ser refeito, complementado, ajustado.
Em vez de repetir a piada, que como tal sempre envereda para a caricatura ou algo grosseiro, Zeca Camargo quis saber se alguma vez ele fez algo que tenha considerado perfeito. “Não há nada que não possa ser melhorado”, respondeu o entrevistado.
Vale citar, a seguir, algumas de suas frases, fruto da roda de conversa formada também por Maria Adelaide Amaral, Roberto Muylaert e Tonico Ferreira. A edição completa, uma aula sore mídia, plataformas audiovisuais, bastidores e emoção, elemento central desse negócio chamado TV, está no canal do Roda Viva no YouTube, que linko abaixo.
TV x internet
“Quando eu era pequeno, me diziam que o rádio ia acabar com o jornal porque você não precisaria mais ler notícias, você iria ouvir notícias. Depois, que a televisão iria acabar com o cinema, e depois que a internet iria acabar com a televisão e que o streaming vem agora definitivamente para sepultá-la. Mas isso é uma bobagem. Nada acaba, tudo se transforma.”
“O nosso streaming vai permanecer substituindo o locador de vídeo da esquina, com mais tecnologia, mais competência, mas com uma dificuldade: o locador representava todos os produtores de filmes do mundo inteiro, e hoje a Netflix está perdendo grandes produtores que estão montando seu próprio streaming. Eles descobriram que aquilo que a Netflix fazia eles podem fazer sozinhos. Disney, Universal e mesmo a Apple TV vão começar a produzir em grande escala o seu material. O grande drama é saber se isso vai ser sustentável porque é necessário que haja assinante pra poder suportar todo esse volume de produção. Eu não acredito que haja. Eu acredito que vai continuar havendo a televisão do anunciante e a televisão do assinante. A televisão do anunciante é sustentada com verba dos produtos pra oferecer ao público entretenimento de qualidade, cujo custo não é assinatura mas está embutido no produto que você consome.”
Assédio
“Eu tenho pavor do julgamento precipitado. Hoje, com pressão das redes sociais, com essa questão da absoluta preocupação com o politicamente correto, hoje se pune, se faz e se usa essas questões todas para atingir alguém e eu sou contra qualquer coisa que não dependa de grande investigação, de provas e de gravidade, e mais ainda, as que eventualmente não possam ser corrigidas. Se puder ser corrigido, eu fico com a correção.”
“Você não demitira o José Mayer nem o Marcius Melhem, acusados um de assédio sexual e o outro, de assédio moral?” (Joyce Pascowitch)
“De longe eu não mandaria embora porque são pessoas extraordinárias. Trabalhando lá dentro, eu teria que ter dados, detalhes, fatos que comprovassem isso. Se houvesse uma comprovação, é evidente que demitiria.”
Teste do sofá e #MeToo, movimento que derrubou assediadores de Hollywood (Vera Magalhães)
“A gente tem que pensar também que há muito folclore. Eu não acredito que no meu tempo tivesse um outro critério pra escolher um artista que não fosse o talento, que não fosse a capacidade. Se os Bozós da época fizessem alguma coisa, a gente mandava imediatamente embora, mas só que comprovadamente, investigando. Eu nuca tive, durante todo o período de 31 anos que eu passei na TV Globo, nunca ninguém entrou na minha sala pra dizer o seguinte: ‘eu fui assediada no sentido de permutar a minha demissão, o meu trabalho, a minha escalação por qualquer outra coisa, seja sexo, seja amizade, nunca entrou uma só pessoa na minha sala pra fazer esse tipo de queixa. Quando a gente ouvia de terceiros e não chegava, é porque naquele momento, como toda a questão social era diferente, e sem redes sociais, e sem processo de pressão, talvez as pessoas levassem aquilo ou com receio ou até porque achassem que aquilo era natural, e não seria nunca um investigador de sexo, não tenho essa característica, mas na minha sala, nunca chegou um caso de reclamação de assédio.”
Redes sociais x TV
“A internet e televisão são o mesmo mundo, portanto elas se cruzam, é que é necessário sempre a adaptação à linguagem do veículo. O meio é a mensagem. Se o cara se expressa de uma forma brilhante nas redes sociais, não significa que ele vá fazer o mesmo na televisão, e vice-versa, mas há processos de integração e há possibilidade que isso aconteça. O que a gente não pode é olhar para a televisão e para a internet como dois mundos, isso é um mundo só, são distribuidores de sinal, de produção, e a mensagem sempre vai depender muito do meio.”
Novas gerações para a TV
“A tentativa da televisão se aproximar da linguagem da internet é um erro. O que ela tem de fazer é uma coisa atrativa, adequada, pra que tenha uma presença nela de diversas faixas etárias. Se bem que a televisão ela mesma se descuidou disso porque ela não tem pagado o preço da aproximação com esse público infantil, eliminando toda a programação infantil da televisão por falta de anunciante. É um erro estratégico, hoje só tem praticamente na TV Cultura uma programação voltada para as crianças, as pessoas nascem e se acostumam a esse meio, não é isso o problema principal, mas o abandono que a televisão dá por falta de falar a língua deles é grave.”