Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Órfãos da Terra’ seduz espectador pela comoção e qualidade da narrativa

Julia Dalavia e Letícia Sabatella em cena em 'Órfãos da Terra' / Reprodução

Nova novela das seis da Globo, “Órfãos da Terra” quase foi novela das onze, mas poderia muito bem ter sido novela das nove. Por razões que talvez nunca venham a ser totalmente expostas para nós, jornalistas especializados no ramo, e muito menos ao público, a produção migrou para a faixa das 18h. Desconfio que o espectador do fim de tarde esteja em um ambiente mais propício à reflexão que a plateia das 21h, quando a casa já soma mais gente, alguma muvuca e um certo cansaço, algo pronto para espantar o entretenimento que incomoda, no melhor sentido, tirando o espectador da sua zona de conforto. De certa forma, as novelas das sete e das nove atendem ao desejo de um público menos disposto a pensar.

Os refugiados de Thelma Guedes e Duca Rachid não são exatamente figuras diante de quem estamos nos lixando, muito pelo contrário. Eles nos afetam profundamente, ou deveriam. Some a isso um enredo com conflitos clássicos, como o sheik muito rico que tenta comprar a mocinha que poderia ser sua filha, valendo-se da dor dela pela saúde frágil do irmão mais novo, à beira da morte.

Mas, se for pelo incômodo, sinto em avisar que o pacote final valeria a exposição de uma vitrine mais ampla. Por mais que o produto esteja disponível no GloboPlay, o alcance da TV aberta às nove da noite é sempre imbatível.

Por pacote final, entenda um elenco afinadíssimo no tom de interpretação de cada personagem, aliado a uma produção de arte e figurino de parar os olhos, com edição de imagens e sonorização musical primorosa. Está feito o estrago: sinto que já sou dependente da saga de Laila (Julia Dalavia) e de seus pais (Marco Ricca e Ana Cecília Costa) a quem já trato como amigos da família.

Ricca e Ana Cecília reinam em cena, com destaque para a sequência em que os pais recebem a notícia da morte do filho e expressam sua dor sem uma palavra, só no grito profundo que a situação permite.

A edição teve a delicadeza de revezar a tragédia com o triunfo do malvado Aziz, prestes a consumar seu casamento com a primogênita daquele casal que sofre a perda de seu menino, ao som de um melancólico dedilhar de teclas.

Passando a São Paulo, com legendona didática estampada na tela, temos Rânia, a síria vivida por Eliane Giardini, que inevitavelmente nos remete à Nazira, original do Marrocos, em “O Clone”, e à comovente Zana, de família libanesa, na minissérie “Dois Irmãos”.

A parceria com o ex-marido, Paulo Betti, nos ajuda a deixar aquelas personagens em segundo plano para pensar na química certeira do casal, da vida real à ficção.

E como pede o sangue árabe, mais que o estereótipo dos italianos do sul da Bota, tudo é de uma dor lancinante. Rânia sofre e se descabela ao  ouvir falar no desaparecimento dos parentes, a ponto de dar cores cômicas à sua dor, mas só para quem assiste ao seu sofrimento de uma certa distância.

Química também é termo primordial para falar do par formado por Renato Góes e Julia Dalavia, que já se encontraram na belíssima primeira fase de “Velho Chico” (2016). Basta um olhar cruzado entre os dois e a plateia já grita na torcida pelo final feliz de uma história que está só começando.

Herson Capri, arrebatador como o homem poderoso e impiedoso (repare nos adjetivos que tornam redundante classificar a trama como melodrama, e digo isso preconceito pelo termo, no melhor sentido do termo, na veia). A figura do sheik, em contraste com a serenidade igualmente sedutora de Letícia Sabatella, a esposa, é outro clássico. Mas, assim como um mesmo acontecimento pode ter diferentes impactos de acordo com o contexto, formado pelo tempo, espaço e homem de cada época, a presença deste sujeito nos dias de hoje insulta de modo exponencial uma plateia que tem sido encorajada a denunciar misoginia, assédio sexual e violência doméstica. Ao protestar contra a mulher porque ela não o “obedeceu”, ele gera no espectador, e mais ainda na espectadora, uma indignação que só favorece o envolvimento do público com a história.

Nos dias de hoje, chamam isso de poder de engajamento, o que a novela tem de sobra.

Que venham mais cem capítulos. Estamos todos na torcida por Laila, em contraste à mimada Dalila, filha de Aziz, vivida por Alice Wegmann.

A direção tem a delicadeza, mas também a mão firme que o enredo sugere, na alternância de opressores e oprimidos.

A novela é, em suma, perigosamente sedutora, e digo perigosamente porque há de nos roubar atenção diária, forçando o adiamento de outras tantas tarefas. Talvez a suspeita de que “Órfãos” também seria uma boa pedida para o horário nobre tenha incentivado a Globo a disponibilizar, para assinantes, os capítulos com antecedência no GloboPlay, algo inédito na seara dos folhetins.

 

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Cristina Padiglione

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