‘Órfãos da Terra’ seduz espectador pela comoção e qualidade da narrativa
Nova novela das seis da Globo, “Órfãos da Terra” quase foi novela das onze, mas poderia muito bem ter sido novela das nove. Por razões que talvez nunca venham a ser totalmente expostas para nós, jornalistas especializados no ramo, e muito menos ao público, a produção migrou para a faixa das 18h. Desconfio que o espectador do fim de tarde esteja em um ambiente mais propício à reflexão que a plateia das 21h, quando a casa já soma mais gente, alguma muvuca e um certo cansaço, algo pronto para espantar o entretenimento que incomoda, no melhor sentido, tirando o espectador da sua zona de conforto. De certa forma, as novelas das sete e das nove atendem ao desejo de um público menos disposto a pensar.
Os refugiados de Thelma Guedes e Duca Rachid não são exatamente figuras diante de quem estamos nos lixando, muito pelo contrário. Eles nos afetam profundamente, ou deveriam. Some a isso um enredo com conflitos clássicos, como o sheik muito rico que tenta comprar a mocinha que poderia ser sua filha, valendo-se da dor dela pela saúde frágil do irmão mais novo, à beira da morte.
Mas, se for pelo incômodo, sinto em avisar que o pacote final valeria a exposição de uma vitrine mais ampla. Por mais que o produto esteja disponível no GloboPlay, o alcance da TV aberta às nove da noite é sempre imbatível.
Por pacote final, entenda um elenco afinadíssimo no tom de interpretação de cada personagem, aliado a uma produção de arte e figurino de parar os olhos, com edição de imagens e sonorização musical primorosa. Está feito o estrago: sinto que já sou dependente da saga de Laila (Julia Dalavia) e de seus pais (Marco Ricca e Ana Cecília Costa) a quem já trato como amigos da família.
Ricca e Ana Cecília reinam em cena, com destaque para a sequência em que os pais recebem a notícia da morte do filho e expressam sua dor sem uma palavra, só no grito profundo que a situação permite.
A edição teve a delicadeza de revezar a tragédia com o triunfo do malvado Aziz, prestes a consumar seu casamento com a primogênita daquele casal que sofre a perda de seu menino, ao som de um melancólico dedilhar de teclas.
Passando a São Paulo, com legendona didática estampada na tela, temos Rânia, a síria vivida por Eliane Giardini, que inevitavelmente nos remete à Nazira, original do Marrocos, em “O Clone”, e à comovente Zana, de família libanesa, na minissérie “Dois Irmãos”.
A parceria com o ex-marido, Paulo Betti, nos ajuda a deixar aquelas personagens em segundo plano para pensar na química certeira do casal, da vida real à ficção.
E como pede o sangue árabe, mais que o estereótipo dos italianos do sul da Bota, tudo é de uma dor lancinante. Rânia sofre e se descabela ao ouvir falar no desaparecimento dos parentes, a ponto de dar cores cômicas à sua dor, mas só para quem assiste ao seu sofrimento de uma certa distância.
Química também é termo primordial para falar do par formado por Renato Góes e Julia Dalavia, que já se encontraram na belíssima primeira fase de “Velho Chico” (2016). Basta um olhar cruzado entre os dois e a plateia já grita na torcida pelo final feliz de uma história que está só começando.
Herson Capri, arrebatador como o homem poderoso e impiedoso (repare nos adjetivos que tornam redundante classificar a trama como melodrama, e digo isso preconceito pelo termo, no melhor sentido do termo, na veia). A figura do sheik, em contraste com a serenidade igualmente sedutora de Letícia Sabatella, a esposa, é outro clássico. Mas, assim como um mesmo acontecimento pode ter diferentes impactos de acordo com o contexto, formado pelo tempo, espaço e homem de cada época, a presença deste sujeito nos dias de hoje insulta de modo exponencial uma plateia que tem sido encorajada a denunciar misoginia, assédio sexual e violência doméstica. Ao protestar contra a mulher porque ela não o “obedeceu”, ele gera no espectador, e mais ainda na espectadora, uma indignação que só favorece o envolvimento do público com a história.
Nos dias de hoje, chamam isso de poder de engajamento, o que a novela tem de sobra.
Que venham mais cem capítulos. Estamos todos na torcida por Laila, em contraste à mimada Dalila, filha de Aziz, vivida por Alice Wegmann.
A direção tem a delicadeza, mas também a mão firme que o enredo sugere, na alternância de opressores e oprimidos.
A novela é, em suma, perigosamente sedutora, e digo perigosamente porque há de nos roubar atenção diária, forçando o adiamento de outras tantas tarefas. Talvez a suspeita de que “Órfãos” também seria uma boa pedida para o horário nobre tenha incentivado a Globo a disponibilizar, para assinantes, os capítulos com antecedência no GloboPlay, algo inédito na seara dos folhetins.