‘Os Sertões’, de Euclydes da Cunha, é forte referência para nova novela das onze da Globo
Não é que a nova novela das onze (ou supersérie, como prefere a Globo) seja baseada em “Os Sertões”, mas a obra de Euclydes da Cunha é a referência mais forte de “Onde Nascem os Fortes”, a começar pelo título.
“O nome vem de Euclydes da Cunha, ‘Os Sertões’, e temos aqui aqueles três movimentos do próprio livro: O Homem, A Terra e A Batalha”, diz George Moura, que assina a série com Sérgio Goldenberg. “Pedro Gouveia (Alexandre Nero) é a terra, o homem que acredita no Brasil, Samir (Iradhir Santos) é o céu e Maria (Alice Wegman) é o que eu brinco que é o coração, o coração em movimento, uma menina que quer saber o que aconteceu. Se a gente pensar essas matrizes, essas forças, o Pedro é um pouco de empresário empreendedor, que foi o Delmiro Gouveia na vida real, o Iranhdir é um pouco Conselheiro, mas não é isso, e a Maria é um pouco o universo do cangaço, onde não tem rei nem lei, a lei é da força.”
Moura continua: “Eu cito tudo isso, mas não tem nada a ver com isso e tem tudo a ver com isso, a trama é absolutamente original, não tem nada da história do Conselheiro, vem do zero.”
Desde “Amores Roubados”, Villamarim, Moura e Goldenberg pensam em fazer outra produção naquele cenário. Há dois anos, ele seguiu sozinho para uma viagem em busca das primeiras inspirações e locações – na época, Goldenberg estava “grávido” e o risco do Zika Virus era ainda mais latente que hoje. “Quando fiz a primeira viagem, eu fui sozinho, e tinha uma intuição. Levei ‘Os Sertões’ na bolsa e o livro do Vargas Lhosa, ‘A Guerra do Fim do Mundo’, e os olhos olhando, fui construindo essa história.
Samir e o Lajedo das Almas
É no personagem de Irandhir, uma espécie de líder religioso que mistura referências a Conselheiro, João de Deus (o médium goiano) e Papa Francisco, que está um dos cenários mais relevantes para a produção, o Lajedo dos Anjos (Lajedo de Pai Mateus na vida real), onde todo mundo merece o perdão e uma segunda chance. Quando os atores chegavam a Cabaceiras, município onde a equipe concentrou seu QG para gravar em locações diversas distribuídas a um raio de 80 km, Villamarim logo os mandava para lá.
A catarse era inevitável, conta o diretor, e boa parte da imersão necessária para que cada um se encontrasse nessa história já era alcançada nessa visita. “Todo mundo que vai pra lá, chega com um tempo antes de começar a gravar, para viver isso. Todo mundo fez o que eu fiz, que foi uma coisa que me surpreendeu”, relata Villamarim. “Todo mundo teve uma epifania quando chegou a esse lugar. Se você fica nesse lugar, onde o wi-fi não funciona muito, onde você não tem o que fazer…”
“E o silêncio é gritante”, intervém Moura.
“O silêncio é uma marca”, continua Villamarim, “você tem a solidão, tem que mudar toda a sua perspectiva, o seu olhar. E tem esse luxo, no fundo isso é uma coisa muito rica, a possibilidade de a gente estar ali, como artistas, juntos, em viagem para um lugar para contar essa história, isso é raro, é especial e a gente conseguiu fazer com que as pessoas nem percebessem todas as adversidades que são de fato. Se você olhar, é pra forte fazer isso.”
Samir, descreve Villamarim, “não é uma figura muito realista, e um dos primeiros lugares que a gente foi visitar foi o sertão da Paraíba, e a gente chegou a esse Lajedo de Pai Mateus”. “Aquelas palhas ali (aponta para a tela à nossa frente), a gente criou. O Samir tem um lugar que você não consegue compreender muito, ele tem uma noção meio planetária, mas ele mexe com a sua energia, a gente precisava que as pessoas enxergassem isso, precisava criar alguma coisa de cenografia. Aquilo é um pouco o que eu chamo de Xingu do sertão, é um pouco índio.”
Embora cada locação no sertão esteja geograficamente a alguns quilômetros de distância da outro, na tela o público terá a sensação de ver um município organizado como unidade física. Essa ideia será facilmente traduzida pelo chão de terra que aparece em toda a série. O único momento em que veremos asfalto, avisa o trio, será na chegada de Cássia (Patrícia Pillar) a Sertão, ainda na estrada.
“Esse desafio foi vindo e a gente foi parar nesse lugar. A gente rodou aquilo tudo, em torno de Cabaceiras, onde a gente se hospeda, e foi elegendo locações para ter os personagens com uma presença forte na nossa narrativa”, conclui Villamarim.
Moura se diverte em contar que quando lá chegou, o diretor Walter Carvalho, que assina a direção de fotografia da série, teve a sensação de que aquelas pedras do Lajedo de Pai Mateus iam rolar a qualquer momento – embora lá estejam, segundo estimativas, há milhares de anos. “Da próxima vez que eu vier aqui, vou botar uma câmera aqui e vou ficar esperando uma dessas pedras rolar”, disse Carvalho a um sertanejo, morador do local, que lhe respondeu: “Mas venha com tempo”.
Para Moura, “o fato de o Villa ser esse adorável maluco que topa uma aventura dessas dá uma identidade visual a essa história”, o que só é possível com essa disponibilidade e essa imersão em filmar lá. “É um lugar horizontal. Ele fez uma escolha por uma janela horizontal, a verticalidade está nos personagens. E a gente tenta dissecar as palavras porque com poucas palavras, o que é dito se torna muito relevante. Não tem videopapo”, brinca o autor.
A concepção dá às figuras humanas um protagonismo inevitável. “A grandiosidade do sertão é isso”, endossa Villamarim. “Quando a gente trabalha com essa lente mais aberta, e põe uma pessoa em pé, você vai olhar só para ela, como aquela cena de ‘Lawrence da Arabia’, em que o Omar Sharif vem, em meio ao nada, e quando aparece um pontinho preto na tela, no meio do deserto, ele vai se mostrando e o seu olhar é todo para ele.
Na gênese de quem compreende o nordeste para além do trabalho de pesquisa de locações e histórias, é bom citar que Villamarim, nascido em Minas, é filho de piauiense, e conhece um pouco daquela cor de terra desde criança. Moura, nascido no Recife, ainda preserva o forte acento de origem e as lembranças das viagens com o pai, vendedor, que sonhava em ver o filho também vendedor – de certa forma, temos aí um ótimo vendedor de histórias. “É, eu sou um mascate, mas eu neguei o meu pai até uma certa medida, do ponto de vista psicanalítico, uma medida que eu não consegui negar”, reconhece.
Para a trama da vez, o trio também traz na bagagem a condição de fãs de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. É uma referência forte que se soma a filmes como “O Céu que nos Protege”, de Bernardo Bertolucci (1990), “Passageiro: Profissão Repórter” (1975), de Michelangelo Antonioni, e Hannah Harendt. “A gente vai atrás de um Brasil, de uma maneira de filmar. É faroeste? A gente nem viu faroeste”, avisa o diretor.
No enredo, há menções a municípios e estados vizinhos, mas o espectador não terá a clara noção de onde fica Sertão, mesmo nome do município de “Amores Roubados”. “No fundo, é uma cidade imaginária. Porque ela está fisicamente no sertão da Paraíba, se fala da cidade de Recife como capital, se roda no sertão do Piauí, mas é uma cidade imaginária, é uma cidade que compõe todas as cidades, é uma geografia muito específica, em que a unidade é dada pela estrada de terra, como diz o Villamarim”, completa Moura.
A indústria de bentonita está localizada no sertão da pedra. Em “Amores Roubados”, o sertão era da água, que dava vida aos parreirais, propiciando uma produção de vinhos à beira do São Francisco. “Nesse sentido, ‘Onde Nascem os Fortes’ é mais vertical e mais radical que o próprio ‘Amores'”, diz Moura.
Em tempo: a bentonita é um minério não ferroso encontrado a partir das larvas vulcânicas, que tem várias serventias: batom, maquiagem, produto para azia, areia de gato, rejunte de usina atômica, etc.
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