Poupado pelo Jornal Nacional, Moro vira paródia no Zorra
Após uma semana pisando no freio em seus noticiários para abordar o vazamento de diálogos entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol durante o processo de julgamento do ex-presidente Lula no caso do triplex de Guarujá, os jornalistas da Globo tiveram motivo para invejar a liberdade de seus colegas de empresa, na paródia realizada pelo “Zorra”, na noite deste sábado.
Tendo como base a canção “João e Maria”, de Chico Buarque de Holanda, o ator Antonio Fragoso se apresentou como Moro, com uma letra que não deixa dúvidas sobre o episódio que vem ferindo a reputação da até então aclamada Operação Lava-Jato. A sátira resume com grande poder de síntese o que aconteceu de uma semana para cá com alguém que “era herói”, como diz a letra original, conjugando o verbo no passado. Um boneco inflável gigante de Super Homem aparece no cartão postal do poder em Brasília, boneco este que irá murchar ao fim do filme.
Enquanto a canção roda, imagens reais de Moro e Dallagnol vão se intercalando às dos atores. Dallagnol é representado por George Sauma e até o seu famoso power-point, feito na época do andamento das denúncias contra o réu, foi alvo de chacota (“viramos meme por todo país”).
A Globo deu amplo espaço ao assunto desde domingo, no “Fantástico”, quando o vazamento começou a ser divulgado pelo site The Intercept Brasil, mas as edições do Jornal Nacional desta semana priorizaram o debate sobre a criminalidade do suposto grampo que permitiu o vazamento dos diálogos, em detrimento das controvérsias sobre o conteúdo desses diálogos, alvo de inesgotáveis discussões entre juristas, advogados e autoridades no assunto, aqui e no exterior, em todos os veículos de imprensa.
Os noticiários da emissora trataram o vazamento como “ilegal” já na edição de segunda-feira, sem mostrar sobre isso as mesmas dúvidas que trataram os diálogos com adjetivos como “supostos” ou com o uso do verbo “atribuídos a” Moro ou Dallagnol.
Na edição de terça do JN, um parecer do ministro Gilmar Mendes sobre a possibilidade de o uso dos grampos anular uma sentença, mesmo sendo ilegais, tomou 32 segundos. Também do STF, o ministro Marco Aurélio Mello teve 19 segundos para mostrar sua preocupação com o estado democrático de Direito ferido pela debatida relação promíscua entre juiz e procurador. Em seguida, o ministro Luís Roberto Barroso se demorou 100 segundos para dizer que não daria parecer antes de julgar o caso, mas acabou se contrariando e disse que não via razão para toda a “euforia” sobre uma possível reversão das condenações, citando então acusações de corrupção conhecidas por “todo mundo”. Depois disso ainda ganhou mais “disse ainda”, com alguns segundos de uma frase reproduzida pela repórter Andréia Sadi.
Voltando à semana anterior, não custa reparar, quando noticiou a investigação da Polícia Federal sobre uma possível invasão de hackers ao celular do ministro Sérgio Moro, o JN dedicou uma nota coberta (sem imagens) de 18 segundos ao assunto, que não mereceu sequer um espaço nas chamadas de abertura da edição. No dia seguinte, nem uma repercussão sobre o assunto. Afinal, se hackear por hackear é o mais grave, por que a abordagem não mostrou essa relevância antes que algum conteúdo surgisse?
Fica aí a pergunta: um hacker é relevante por si só ou pelo conteúdo expresso no grampo?
Um dos vídeos que mais circularam pelas redes sociais esta semana, mas não pelos telejornais da Globo, foi um trecho da entrevista que Pedro Bial fez com Moro na segunda semana de abril, no Conversa com Bial. Nela, o entrevistador pergunta sobre a ilegalidade do grampo que ele, como juiz, cometeu em 2016, quando interceptou uma conversa da então presidente Dilma com o ex-presidente Lula para nomeá-lo ministro da Casa Civil. Moro então afirma que, naquele caso, valia o conteúdo da conversa e não o meio como foi obtida, dada a relevância do interesse público sobre o diálogo.
A paródia do Zorra, felizmente, também salva essa lacuna, em um verso que canta “…Quem com grampo fere, com grampo será ferido”, legenda de um dos quinhentos memes produzidos diariamente sobre o caso esta semana.
JORNALISMO X ENTRETENIMENTO
O Zorra repete neste caso uma longa tradição da Globo, que sempre foi mais franca no entretenimento do que no jornalismo, onde algum pudor editorial acaba por inibir até as línguas mais soltas.
Foi assim nos tempos de “O Bem Amado” (1973/74), quando o Odorico Paraguaçu de Paulo Gracindo, pelas mãos de Dias Gomes, conseguia provocar no público algum desprezo pelos coronéis da vida real, todos filtrados pelos censores que controlavam rigorosamente as linhas dos noticiários.
E só para não dizer que isso só acontecia em tempos de ditadura ou em questões relacionadas a temas políticos, também foi assim na Copa de 2006, na Alemanha, quando o modesto quadro da Denise Fraga no Fantástico, Copas de Mel, conseguia ser mais crítico à seleção brasileira que o staff coordenado por Galvão Bueno, refletindo aí um certo temor do departamento de esportes em desagradar a CBF e comprometer os negócios da casa.
Sem rabo amarrado com a política, com o esporte ou com os negócios internos, o entretenimento faz o papel que inibe, para dizer o mínimo, a voz de outros setores dentro de uma empresa do tamanho da Globo.
As causas, conflitos e controvérsias do MST e do MTST, movimentos de Sem-Terra e Sem-Teto, foram muito mais debatidas na ficção do que nos noticiários da emissora, e cito desse nicho pelo menos duas novelas: “Pátria Minha” (1994), quando Patrícia Pillar, linda de tudo, morria massacrada por um trator numa cena de desocupação de um terreno, e “O Rei do Gado” (1996), de Benedito Ruy Barbosa, de novo com Patrícia Pillar erguendo a bandeira da sem-terra.
Por isso é que se diz que só o humor salva, mas nem por isso vamos desistir de perseguir o tão cobiçado equilíbrio editorial onde quer que seja, ou, se for o caso, de assumir posições tomadas com clareza.
Confira a seguir a letra da paródia e, aqui, o vídeo do esquete, disponível no Globoplay.
Eu antes era heroi e dava até palestras em inglês
O pai dos três playboys me nomeou só pra agradar vocês
Eu já vazei informações, mas foi por boas intenções
Hakearam o Telegram
Meu papo com Deltan virou bola da vez
Agora eu me ferrei
Pra que é que eu fui deixar de ser juiz
Seguiam minha lei, faziam tudo o que eu quis
E você fez power-point só pra me bajular,
Ficou mal feio mas deixa pra lá
Viramos meme por todo país
(Deltan) Não, não chore não porque vazaram o nosso segredo
Um bando de espião, a serviço de um partido
(Deltan e Moro) Gringo vacilão, talvez agora a gente perca o emprego
Pois quem com grampo fere, com grampo também será ferido
Eu antes era herói…
https://globoplay.globo.com/v/7696605/programa/
(O trecho a seguir foi atualizado às 19h45 deste domingo, 16/6)
Diretor de Jornalismo da Globo, Ali Kamel acredita que esta crítica foi “injusta” por alguns motivos, inclusive por comparar jornalismo e humor. É justo que ele se manifeste. Diz o diretor:
“O texto ‘Poupado pelo Jornal Nacional, Moro vira paródia no Zorra’ é, ao mesmo tempo, contraditório, injusto e faz confusão com regras básicas do jornalismo e do humor. Se, como admite o texto, ‘A Globo deu amplo espaço ao assunto desde domingo, no ‘Fantástico’, quando o vazamento começou a ser divulgado pelo site The Intercept Brasil’, como pode ter poupado Moro? Os diálogos publicados pelo Intercept foram exibidos em longas reportagens no Jornal Nacional (elas estão à disposição de todos no Globoplay para comprovação). A colunista alega, então, que o JN deu ênfase ao noticiário sobre as investigações da PF sobre o hackeamento de autoridades. Não é verdade, o JN noticiou a apuração da PF como era o seu dever. A Folha de S.Paulo, em cujo site a autora publica o seu artigo, fez o mesmo. No dia 11, o jornal deu meia página ao assunto, no dia 12, também, e, no dia 13, dedicou 2/3 de página. Cumpriu com a sua obrigação como o JN. A coluna é injusta com o Jornal Nacional porque compara os tempos dedicados, na edição de terça-feira, aos ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio, do STF, contrários a Moro (ao todo 51 segundos), com os 100 segundos que o JN dedicou ao ministro Luiz Roberto Barroso com uma declaração mais positiva ao então juiz. Mas a autora omite que, na mesma reportagem, o JN trouxe uma declaração de 54 segundos do advogado de Lula, contra Moro. Ora, somada essa fala de Cristiano Zanin às dos ministros Gilmar e Marco Aurelio, temos 105 segundos de declarações negativas a Moro e 100 segundos de positivas. Onde está o desequilíbrio? No JN de sábado, dia do esquete do Zorra mostrado na coluna, o JN dedicou três minutos e quarenta e cinco segundo a novos diálogos divulgados pelo Intercept e mais quarenta e cinco segundos de uma nota da defesa de Lula contra o ministro Moro. Sem nada esconder, sem poupar ninguém. Por fim, espanta que a autora compare humor e jornalismo, como que a sugerir que fosse possível o humor tratar os fatos com a responsabilidade e acuidade do jornalismo e o jornalismo tratar os fatos com a leveza e ironia do humor. O JN não é imune a críticas, mas não pode deixar sem resposta tentativa de estabelecer narrativas tão injustas.”
Assina: Ali Kamel, diretor de jornalismo da Globo.
Nota da redação: Aleguei ao diretor que não somei o tempo consumido pelo advogado de Lula porque ela é um contraponto à defesa do próprio Moro e de Dallagnol. Ou seja, esta seria outra conta. A comparação do texto se atém aos ministros do Supremo, que, afinal, são aqueles a quem deve caber alguma decisão no desfecho do caso. O diretor mesmo assim discorda. Acredita que então seria necessário somar as defesas das associações de juízes, procuradores, OAB, ministros do Supremo e, por fim, Dallagnol, Moro e Lula, via advogado.
Registrado.
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