Por que a Globo deu tratamentos tão distintos aos casos de Melhem e José Mayer?
Há quem se questione por que a Globo tratou de modo tão distinto os casos de assédio de José Mayer e Marcius Melhem.
Isso forçou uma resposta quase imediata de Mayer, pedindo desculpas e assumindo o erro. E uma reação que não foi exatamente imediata por parte da Globo. Entre a denúncia da figurinista, de 29 de abril de 2017, e o desligamento dele da Globo, em 15 de janeiro de 2019, quase dois anos se passaram, muito embora a Globo tenha, notadamente, mantido seu astro na geladeira durante esse período.
Mas ali não havia como camuflar o motivo da saída do ator.
O caso de Melhem começou a se desenhar a partir da denúncia de Dani Calabresa à área de compliance da Globo, mas ela mesma não se pronunciou de viva voz até a reportagem da revista Piauí, publicada nesta sexta (4). Desde a queixa da atriz, em dezembro passado, diretores da emissora se esforçaram para resolver o assunto internamente, evitando tornar o episódio público, o que, como se vê agora, seria impossível, a não ser que as vítimas, a essa altura já no plural, abrissem mão de levar a denúncia adiante ou de se contentar com um pedido de desculpas, esperança que a direção da Globo tinha.
O colunista Léo Dias, ainda no UOL, trouxe a denúncia para a esfera pública logo no início de 2020. Um grupo de atores e redatores do “Zorra” então desmentiu tudo, com carta assinada por mais de 30 profissionais.
Resumindo, a Globo falhou em tentar botar panos quentes no caso. Mas não teve a chance de tentar fazer isso no episódio de Mayer por ele já ter começado pela esfera pública, com agressor e agredida falando publicamente.
A figurinista Su Tonani, cujo nome poucos conheciam, era uma profissional de bastidores.
Dani Calabresa é uma humorista de sucesso, o que amplifica a dimensão do caso Melhem.
Em meio a brincadeiras e memes sobre quarto de suruba no Projac, por mais que esse repertório se aproxime do tom de piada, a Globo naturalmente não tem interesse em ver seus detratores a pintar as suas dependências como um grande bacanal.
Testes do sofá, favores sexuais em troca de promoção, nada disso é exclusividade da indústria da TV, mas toma proporções muito maiores por causa da vitrine representada pelo ofício: atores, roteiristas e televisão são itens intrinsecamente ligados à fama, o que só torna mais gigante o que acontece ali.
Dito isso, a Globo tentou frear a publicidade do caso Melhem até para preservar a imagem da casa. Primeiro anunciou sua saída do posto de chefe do núcleo de humor, aproveitando que ele estava se afastando da empresa para cuidar de uma delicada cirurgia cardíaca de uma de suas filhas, nos Estados Unidos. Mas se fosse só uma licença, por que destituí-lo do cargo? Além disso, a empresa esperava que nesse período as coisas se arrefecessem.
Não deu certo.
Na sua volta, acharam por bem encerrar o contrato, e isso ocorreu de comum acordo. Outras denúncias se juntaram às queixas de Calabresa. O grupo que endossava as acusações contra Melhem não se conformou com a nota, em tom amistoso, assinada pela direção da empresa por ocasião de sua saída. Poderia ter sido neutra, sem agradecimentos pelos serviços prestados, mas talvez nem isso aquietasse os ânimos de quem se expôs, ao menos dentro da firma, para reverter uma situação constrangedora.
Trataram de eliminar o cargo de chefe de humor, reorganizaram a ordem das hierarquias, mas nada funcionou.
A advogada Mayra Cotta, então, representando várias clientes, falou sobre o assunto em reportagem exclusiva de Mônica Bergamo nesta Folha. E agora, o repórter João Batista Jr. trouxe detalhes inéditos em uma reportagem que desde esta sexta (4) bate recordes de leitura, na revista Piauí.
Melhem fez, em resposta à reportagem de Bergamo, uma nota. Agora, topou gravar entrevista a Maurício Stycer, há meses em busca de ouvir Melhem sobre as denúncias, em companhia de Dolores Orosco, editora-chefe do Universa, segmento do UOL dedicado a questões femininas.
O ator, roteirista e diretor diz que não há processos na Justiça contra ele e quer responder a tudo, a partir de agora, nessa seara. No caso de Mayer, a queixa também não chegou à Justiça. A figurinista Su Tonani desistiu até de registrar queixa.
No caso de Mayer, não há, pelo que se sabe, nenhuma outra queixa a endossar seu comportamento de assediador, diferentemente do episódio Melhem. A denúncia de Calabresa acabou encorajando outras reclamações contra o humorista.
A Globo não teve alternativa no caso de Mayer porque o episódio chegou à imprensa antes que a direção da casa tomasse conhecimento, mas quando a Globo fracassa na tentativa de resolver a questão internamente, como tentou com Melhem, seu compliance sai fragilizado. Futuras vítimas talvez não tenham a discrição de Calabresa para encaminhar uma queixa à empresa antes de jogar o lixo na esfera pública.
Não sei qual é o contexto do caso Melhem, se aconteceu com uma, duas ou dez mulheres, como e o que aconteceu, mas me solidarizo desde já com qualquer vítima de constrangimento.
O fato é que casos de assédio, principalmente sexual, só entram na pauta de resoluções de uma empresa a partir das denúncias feitas contra o agressor. Há muitos casos de assediadores sabidamente conhecidos dentro de cada empresa, que só serão fritados quando alguém botar a boca no trombone.
Em geral, são conhecidos os profissionais que, ocupando cargos de chefia ou posição superior, eliminam ou promovem profissionais de acordo com a concordância de subalternos em lhes prestarem favores sexuais. Mas o comando da empresa faz vista grossa enquanto não houver alguém disposto a se expor em um processo de denúncia. Ou alguém acha que ninguém no métier de cinema e TV conhecia a fama de Kevin Spacey e Harvey Weinstein antes que uma vítima lhes apontasse o dedo?
Estamos aprendendo a lidar com a questão, e isso já é algum avanço. Mas se as empresas querem transmitir confiança sobre sua imagem, que tratem dos casos antes que eles ganhem dimensão pública. O ideal é que não se espere por uma primeira denúncia para resolver maus comportamentos.
Há profissionais com conhecido hábito de abuso que só serão avaliados quando alguém, e se alguém, se manifestar. E quando isso acontecer, a empresa há de se posicionar com a falsa convicção de surpresa, como se nunca tivesse sabido de nada.