Por que ainda passam cheque e usam secretária eletrônica em novela?
No capítulo desta terça-feira (1º) da novela “Um Lugar ao Sol”, Teodoro (Fernando Eiras) cobrou sua irmã, Elenice (Ana Beatriz Nogueira), sobre a entrega de um cheque que ele lhe deu para pagar o eletricista.
A própria Elenice, quando atendeu a um pedido de empréstimo do filho, Renato (Cauã Reymond), que na verdade é Christian, assinou um cheque e o entregou a ele, diante das câmeras.
Na mesma novela, Santiago (José de Abreu), em mais de uma cena, apareceu com envelope em mãos para entregar o cheque do mês às filhas Bárbara (Alinne Moraes) e Nicole (Ana Baird).
E Breno (Marco Ricca), ainda na semana passada, deixou um cheque nas mãos de Ilana (Mariana Lima) para ajudar nos gastos necessários à pequena Maria, filha do casal. Breno, aliás, vai com frequência ao banco para fazer serviços de transferência de dinheiro, tarefa que a internet também já propicia até aos mais conservadores, o que não é o caso do personagem.
Pergunta: eles não têm acesso a serviços de banco via internet nem usam PIX? Até o eletricista já tem PIX. Há duas semanas, paguei aqui um encanador com transferência bancária online via celular, como faço com minha diarista: o depósito cai na hora e evita ao portador do cheque ir ao banco para depositar o papel. É seguro, rápido e certeiro.
O uso do cheque em cena, e não só em novela, mas em obras audiovisuais em geral, é um recurso dramatúrgico. Há na entrega do cheque, e mesmo no suspense em torno de ele ser ou não depositado, uma ação, um gesto, um ato físico, enfim, coisa que não existe no clicar de teclas de um celular ou de um computador para consumar uma transferência bancária, de modo a explicitar para o espectador a ação em movimento.
Da mesma forma, há na gravação de uma mensagem ouvida via secretária eletrônica um gestual que não acontece no envio de mensagens escritas via WhatsApp, Telegram ou mesmo SMS. Daí o uso, completamente fora de seu tempo, de secretárias eletrônicas que ainda sobrevivem em filmes, séries e novelas. É tempo de os diretores descobrirem as mensagens via áudio enviadas por celular.
Ainda hoje, acontece muito de alguém na ficção audiovisual deixar mensagem gravada em secretária eletrônica de celular ou de telefone fixo (sim, ele ainda existe, mas a secretária seria peça de antiquário). E quem ainda ouve mensagens gravadas na caixa postal do celular?
Destaco aqui as histórias vistas em telas ou mesmo nos palcos, já que a literatura, feita de cenas traduzidas apenas por palavras, sem encenação, dispensa esses recursos fora de seu tempo.
Em nome das ações dramatúrgicas, ou dramáticas, como já diz o termo, partos naturais com mil contrações, urros e dores são muito mais eficazes para comover o espectador do que uma cesária.
No ótimo “Mães Paralelas”, novo filme de Almodóvar, disponível na Netflix, Penélope Cruz e Milena Smit chegam a caminhar no corredor do hospital para incentivar a saída de seus bebês da barriga, e eles vêm ao mundo sob fortes contrações das mães.
Nesse caso, o filme é espanhol, e a obsessão médica por cesárias é um problema brasileiro, admitimos. Europeus e norte-americanos priorizam o parto natural, mas as obras dramatúrgicas realizadas no Brasil, país que há muito banalizou o parto cesário, também se valem sempre de nascimentos naturais, se possível com obstáculos dramáticos, para comover a plateia.
Outro caso de descompasso com a realidade aconteceu na novela “Avenida Brasil”, um fenômeno que uniu crítica especializada e audiência, em que o autor João Emanuel Carneiro foi amplamente cobrado pelo fato de a mocinha, Nina (Débora Falabella), não ter uma cópia digital das fotos que incriminavam sua inimiga, Carminha (Adriana Esteves). A verdade é que se ela não tivesse perdido as provas conseguidas com aqueles registros àquela altura da novela, a trama teria durado quatro meses menos. Mas o autor teria de fato de ter pensado em outra alternativa para justificar a ausência de registros digitais.
A não ser no caso da cesária, a tecnologia tem atrapalhado as narrativas audiovisuais. Na era pré-celular, quando era mais difícil encontrar as pessoas onde elas estivessem, os desdobramentos de histórias em torno de buscas, perseguições e traições se multipliavam à vontade. O mesmo se dava no tempo em que não era possível confirmar uma paternidade pelo simples exame de um fio de cabelo ou de saliva.
Um bebê trocado na maternidade poderia crescer e passar a vida com pais não biológicos, sem saber que tinha outra origem. O que seria de “O Direito de Nascer” na era do teste de DNA? E de tantos outros folhetins ao redor do mundo, desde os primórdios do melodrama televisionado?
Por mais que a ficção não seja documentário, é preciso zelar pela lógica, não necessariamente pela realidade absoluta. Quando Harry Potter sai voando em uma vassoura ou tem seus poderes limitados, toda uma narrativa de argumentações sustenta aquele enredo, sem que ninguém se queixe de que o pequeno bruxo fique invisível ou coisa que o valha.
É preciso sustentar a encenação.