Qual é o meu lugar de fala na escrita?
Jaqueline Vargas *
Outro dia, me peguei pensando nisso: na fala do autor roteirista. Lembrei de poetas, escritores e suas reflexões sobre o quanto de quem escreve passa para o papel. A certeza é: sempre passa algo. Na escrita a fala do escritor, sua voz, é ouvida mesmo que baixinho, mesmo que de longe, mesmo que sintoma. É inconsciente, quando você se dá conta já está, já ultrapassou a barreira e disse tudo o que queria.
Chuck Palaniuk, no seu livro sobre o ofício de escrever, aponta que quando somos interpelados pelo leitor ou espectador devemos parar e ouvir, afinal, é a vez dessa pessoa falar. Falamos antes, falamos em cena. Nossa voz é anterior, é o encontro com a tela, o papel. Falamos sozinhos, todos que escrevem falam assim. Uns em voz alta, outros nem tanto, outros falam somente dentro de suas cabeças. Independente do tom, a voz do autor se grava na linha e termina quando é escutada, lida, enfim chega ao público. É o nosso jeito subliminar de conversar com a plateia.
‘Sessão de Terapia’ (GNT) é a série onde mais converso com o público. Mesmo que não sejam questões ou vivências pessoais, o famoso ponto de vista se faz presente. E às vezes, escrevemos para entender aquilo que nos é obscuro. A fala se torna questionamento. Por exemplo: ‘Maria Magdalena’ (Netflix). Nessa obra pude colocar minha fala sobre essa mulher tão especial, apresentá-la de forma distinta, longe dos estereótipos nos quais Maria foi encaixada e questionar o porquê de a rotularam assim.
Enfim, em todas as obras que escrevi, uma faceta minha falou. Em algumas, várias facetas. E de fato, somos multifacetados. Podemos ter várias vozes e alcances se não formos interrompidos. Já temos um crítico interno soltando alertas a cada frase duvidosa e sim, escrevemos pensando em quem nos escutará. Essa interrupção fantasma existe, mas atualmente não é a única. Vivemos em muitos momentos um mansplaining da escrita. Mansplaining é um termo que se refere ao hábito de alguns homens de interromperem as mulheres para explicar o que elas estão pensando, sendo que não há ninguém melhor para explicar do que a dona do pensamento. Esse fenômeno não é um privilégio do mercado audiovisual brasileiro, mas me parece aqui exacerbado. Somos chamados por nossa escrita que é o nosso lugar de fala, no entanto, muitas vezes, se torna difícil falar.
São muitos algoritmos, muitas notas, muitas demandas, muitos encaixes, muitos pratos para equilibrar e acima de tudo, muitas vozes. Percebo em colegas que estão no mercado ao mesmo tempo que eu um sofrer com essa precarização da nossa voz. O que é um autor roteirista? É um ventríloquo por excelência ou apenas em alguns casos? Sim, muitas vezes somos chamados para dar corpo à ideia de alguém, mas uma ideia é algo tão volátil. Difícil encontrar um grande conceito que diga tudo em si.
Não desejo calar outras vozes, porque entendo muito bem como é estar neste lugar, mas apenas acredito que a voz do autor roteirista deva ser mais ouvida. Afinal, a escrita é o nosso lugar de fala e essa fala vai passar mesmo que à revelia.
- Jaqueline Vargas: Há mais de 20 anos criando obras de ficção para cinema, TV, streaming e literatura, Jaqueline Vargas adaptou para o Brasil as duas temporadas originais israelenses da série “Sessão de Terapia” (GNT/Moonshot Pictures) e criou as temporadas 3, 4 e 5 (em produção). Assina ainda as séries “Maria Magdalena” (Sony Pictures International/ Dopamine) e “Rua Augusta” (TNT/O2 Filmes), as novelas “Terra Prometida” (Record), “Malhação – Viva a Diferença” (Globo), e os longas-metragens “Querida Mamãe”, estrelado por Selma Egrei e Letícia Sabatella, e “Predestinado – Arigó e o Espírito do Dr. Fritz”, estrelado por Danton Mello e Juliana Paes, ambos produzidos pela Moonshot Pictures. Na literatura, Jaqueline lança em maio seu primeiro título de poesias “Aquela que não é mãe” pela editora Buzz.