Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Racismo recreativo no BBB: o Brasil está vendo?  

João e Rodolffo, caracterizado como homem das cavernas, no BBB / Reprodução

Marina Lourenço e Paloma de Moura Souza *

 

Recentemente, o programa Big Brother Brasil foi palco de mais uma polêmica envolvendo a questão racial. O cantor sertanejo Rodolffo, vestido de homem das cavernas por um castigo do jogo, comparou a peruca que trajava, cujo aspecto era bagunçado e sujo, ao cabelo black power do participante João Luiz, que é negro.

Alguns dias depois, o discurso emocionado de João sobre o episódio – direcionado ao ofensor e aos demais participantes – trouxe à tona o cansaço das pessoas pretas em serem ofendidas por comentários feitos, alegadamente, “sem a intenção” de ofender.

A reação de Rodolffo, no entanto, foi justamente a que João e muitos outros já esperavam: o sertanejo disse que foi pego de surpresa pelo desabafo e emendou dizendo que o comentário não passou de brincadeira, feita sem nenhuma intenção de ofender – e ainda acrescentou que a similaridade da peruca e do cabelo de João era inegável.

A utilização do “humor” para justificar ofensas discriminatórias proferidas contra pessoas pretas é prática bastante comum. Na realidade, esse recurso é comumente empregado para disfarçar o dolo contido nas ofensas e a prática tem até nome: racismo recreativo.

Segundo Adilson Moreira, autor de primorosa obra sobre o tema, o racismo recreativo pode ser definido como a utilização ou normalização de piadas que usam estereótipos do cabelo afro, traços e outros fenótipos negros para produzir um humor hostil. Essa forma de propagação de ofensas discriminatórias é empregada para reforçar o ideal de que o branco é o padrão estético e intelectual e, consequentemente, ridicularizar aqueles que estão fora do padrão caucasiano. Exemplos claros da prática são os personagens “humorísticos” Mussum e Vera Verão, para citar alguns.

Com a maior expressividade do debate racial nos últimos anos, contudo, parte da sociedade vem cobrando um papel mais ativo da mídia no combate a esse tipo de “humor” discriminatório.

No caso específico do BBB 21, o anseio foi atendido, em certa medida. Pela primeira vez na história do reality, o apresentador Tiago Leifert discursou ao vivo sobre a necessidade de as pessoas brancas assumirem a responsabilidade de compreender e combater atitudes discriminatórias aos negros, as quais, muitas vezes, estão transvestidas em piadas ou brincadeiras pejorativas, como no caso dos dois participantes. O apresentador foi categórico ao afirmar que a falta de conhecimento ou ignorância sobre as questões raciais não pode mais ser utilizada como desculpa para comentários ofensivos direcionados às pessoas pretas, motivo pelo qual todos deveriam se informar e aprender sobre o tema.

O discurso realizado faz menção a um ponto de grande importância: a intenção contida no comentário ofensivo. Isso porque, o ponto central da questão envolvendo a punição das injúrias raciais é, justamente, a necessidade de demonstração da vontade do agente em ofender a honra da vítima, sem a qual o delito não estaria caracterizado, conhecida no mundo jurídico como animus injuriandi.

A constante alegação de que o ataque racial foi feito “sem a intenção” ou “de brincadeira” encontra guarida no racismo enraizado na nossa sociedade e lança dúvidas, justamente, sobre a real intenção do ofensor, o que, por vezes, impede a sua correta responsabilização e, também, desmotiva as vítimas a denunciarem a injúria racial.

Isso se aplica, justamente, ao caso dos participantes Rodolffo e João Luiz, no qual o sertanejo disse que não teve a intenção de ofender o professor. No entanto, caberá a João, se quiser, representar pela deflagração das investigações e ao Ministério Público, se entender cabível, demonstrar o dolo do cantor durante a persecução penal.

O episódio, apesar de infeliz, foi transmitido para quase 40 milhões de telespectadores e lançou luz sobre a necessidade de conscientização da população sobre a injúria racial, vista por muitos, ainda, como “vitimismo”. O assunto é de grande relevância: só em 2019, no estado do Rio de Janeiro, 844 pessoas foram vítimas de injúria racial, o que equivale a duas vítimas por dia.

De certo modo, apesar do referido episódio ter dividido opiniões, notadamente quanto à mobilização causada nas redes sociais, o programa televisivo levou o debate racial a diversos lares do país. O posicionamento da emissora, por sua vez, foi um primeiro passo importante para a coibição do racismo recreativo no país.

Para que episódios de injúria racial deixem de ser cotidianos, é extremamente necessária a adoção de políticas de enfrentamento e combate ao racismo, de forma massiva, tanto pelos órgãos estatais quanto pelos produtores de conteúdo midiático, a fim de que o “humor” deixe de ser utilizado como disfarce para subjugar as características de uma raça, que por três séculos foi escravizada no Brasil.

*Marina Lourenço e Paloma de Moura Souza são advogadas criminalistas do escritório Kehdi & Vieira Advogados e assinam este artigo especialmente para o TelePadi.

 

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