Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Reaça’, clipe do ‘Tá no Ar’, endossa espaço demarcado para tom progressista na Globo

Imagem de manifestações com as cores do Brasil no clipe 'Reaça'

Houve quem visse o clipe “Reaça”, que fechou a última edição do “Tá no Ar”, repercutindo em milhares de compartilhamentos pelas redes sociais, e mal tenha acreditado que aquilo foi de fato ao ar na tela da Globo.

Sim. Foi. Já em hora meio avançada, pós-paredão de “BBB”, mas foi.

“Reaça”, uma paródia sobre a canção “Realce”, de Gilberto Gil, encerrou a edição desta terça do humorístico pilotado por Marcius Melhem, Marcelo Adnet e Maurício Farias. No início da temporada, não custa lembrar, eles também surpreenderam a plateia com a clareza de posições apresentadas no vídeo “Walking Back”, paródia da série de zumbis “The Walking Dead”, grande sucesso da FOX, com ideias que “você achou que estavam enterradas” e agora vêm à tona. Condenavam a criminalização do aborto, cartazes pela volta da ditadura e a censura real a exposições de artes, inclusive mostrando manchetes jornalísticas que voltaram a surgir no clipe “Reaça”.

“Reaça” também trouxe uma menção, com imagem, a Mariele Franco, vereadora do PSOL executada no Rio no último dia 14.

Não há hoje, na Globo, espaço com maior endosso para o discurso progressista que o “Tá No Ar”. Pena que o programa, muito trabalhoso, todo clipado com cenas curtinhas, se resuma a apenas dez edições por ano. É um alento, de toda forma, que Melhem deixe parte dessa posição contagiar o semanal “Zorra”, embora ali a proposta seja mais factual.

“Reaça” pede que o espectador não seja “reaça”. Com imagens de pessoas vestindo camisas da seleção em manifestações, condena quem reclama das cotas raciais (“quanto mais melanina melhor”, canta o verso), prega igualdade de direitos, rejeita a torcida pela volta da ditadura, o preconceito aos gays, o machismo e a bandeira da escola sem partido – porque, afinal, o debate faz parte do ensinar, prega a paródia. O “Zorra”, justiça seja feita, também zombou dessa proposta ainda outro dia.

É o avesso das bandeiras empunhadas por movimentos como MBL (Movimento Brasil Livre) e Vem Pra Rua, que chegaram a promover campanhas contra a Globo por ocasião da defesa feita pela emissora, inclusive nos telejornais, à liberdade de expressão em exposições de artes.

Desta forma, a Globo finalmente consegue a proeza de ser odiada por MBL e PT, lembrando o discurso feito contra a emissora pela senadora Gleisi Hofmann no último sábado, quando o ex-presidente Lula se despediu da militância, horas antes de se entregar à polícia.

Ser apedrejada por dois lados antagônicos é uma bênção para qualquer grupo de comunicação, desde que a massa da audiência, um volume muito e muito superior às militâncias que fazem o Fla-Flu político, consuma seus produtos, e isso está incontestavelmente refletido na liderança de audiência da emissora.

É preciso pontuar, no entanto, que a tomada de posição do “Tá no Ar”, de forma tão explícita, não ocorre com tanta transparência em outros programas da casa, longe disso. “Hoje em dia, pior do que tomar uma posição é ficar em cima do muro”, disse Adnet, em conversa com jornalistas, humoristas e blogueiros, dias antes da estreia desta temporada.

Mas não vamos ver a Fátima Bernardes, o Luciano Huck, o Faustão, e muito menos o William Bonner tão à vontade em associar as camisas da seleção brasileira nas passeatas a posições conservadoras, contrárias a exposições de arte que contenham nudez ou a favor da escola sem partido. É claro que o humor pode abraçar menções que programas de auditório e telejornais não devem abraçar.

Mas…

Independentemente de o Jornalismo se sentir mais impedido de tomar posições, óbvio, por ossos do próprio ofício, há que se reconhecer que é ali que moram os hábitos mais conservadores da Globo, sempre com especialistas prontos a endossar pautas como a reforma trabalhista sob o ponto de vista do “mercado”, esse personagem que muitas vezes se sobrepõe à massa trabalhadora. Não me esqueço de ter visto, ainda antes da aprovação da lei que regulamentou o FGTS para empregados domésticos, reportagens da Globo que ouviam profissionais do ramo com medo de perder o emprego em função dos novos encargos trabalhistas impostos aos patrões, ou exemplos de como a creche sairia mais em conta do que ter uma babá, casos de colocar até os empregados contra um projeto que os beneficiaria.

A Globo tomou posições muito claras em seus telejornais contra a censura às exposições de artes e tratou como inadmissível as ameaças do general de exército da reserva Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, feitas no último dia 3, quando disse que se Lula fosse candidato e fosse eleito, seria necessária uma intervenção militar no país. São momentos em que, como diz Adnet, mais vale tomar posição do que ficar em cima do muro.

Em compensação, no campo analítico, a Globo já foi mais pluralista. No início da GloboNews, Emir Sader era do corpo de comentaristas da casa. Não há hoje quem represente suas ideias no canal pago de notícias da Globo. O mesmo se deu com Franklin Martins, que fazia um bom contraste com Arnaldo Jabor, nos noticiários da TV Globo, sem ter, depois de ter deixado a casa, qualquer herdeiro de seus pensamentos.

É em função desse conservadorismo editorial, ou dessa pasteurização do noticiário no terreno analítico, que o público vê o “Tá no Ar” com algum espanto, e chega a pensar que trocou de canal por acidente.

Vão aqui sete momentos em que o humorístico de Adnet, Melhem e Maurício Farias se posicionou notoriamente no campo progressista nesta temporada, às vezes atendo-se apenas a questões de comportamento, às vezes apontando o dedo para direitos humanos e desigualdade social, com holofotes sobre uma elite cafona e individualista.

  1. Clipe “Reaça” (10/04), pelos motivos já aqui citados: defesa de cotas para negros, rejeição a censura das artes, rejeição a escola sem partido, rejeição a preconceito de gêneros e rejeição à defesa pela volta da ditadura.
  2. Clipe “Walking Back”: rejeição à criminalização do aborto, rejeição a censura às artes, rejeição a gritos pela volta da ditadura.
  3. O reality show “Os Kerlakians” mostra a matriarca da família se divertindo com um game em realidade virtual, criado por Tony (Adnet), que permite que o jogador vivencie situações de pobre que ele jamais vai conhecer, como enfrentar uma enchente que inundou seu barraco e se passar por um negro pobre para ver como é ser vítima de preconceito racial e social.
  4. Ainda no reality “Os Kerlakians”, crítica à elite que ganhou ainda mais acidez nesta temporada, Tony cria um aplicativo de namoro em que o integrante só dará “match” se encontrar uma conta bancária similar à sua. Rick Matarazzo, o genérico de Amaury Jr. do colunável, vibra com sua genialidade, sempre disposta a manter o apartheid social que o coloca na esfera da mais absoluta ostentação.
  5. Em um telejornal fictício, uma repórter entrevista um traficante que descreve as crises de mercado que o seu negócio terá de atravessar, caso a maconha seja legalizada. Termina lamentando pelo fim do tráfico de armas, sustentado, em boa parte, com a rentabilidade do tráfico.
  6. Outra série enfoca “os maiores dramas da elite brasileira”, com problemas de ordem absolutamente fútil, como fila na alfândega do aeroporto ou o cachorro que sujou toda a casa, à espera da empregada que virá só no dia seguinte.
  7. “Eu sou Bi”, clipe que aborda a liberdade sexual de se experimentar os dois gêneros, de acordo com a vontade de cada um.

 

Convém lembrar que a ficção e o humor sempre salvaram a Globo de navegar de um lado só.

Nos idos da ditadura, quando a vontade não era exclusivamente da emissora, o Jornalismo vivia sob a vigilância cerrada dos militares, enquanto aquele comunista do Dias Gomes deitava e rolava com seus coronéis nas novelas pós-“Jornal Nacional”. Odorico Paraguaçu, figura vivida pelo magistral Paulo Gracindo, foi a consagração desse contraste, fazendo uma severa crítica ao conservadorismo na novela “O Bem Amado”, calçada no humor, é bom notar, que ridicularizava o poder vigente em Sucupira, um microcosmo do Brasil. Funcionava como um  deboche ao noticiário exibido pouco antes.

Ainda hoje, quando Walcyr Carrasco procurar a absurda “cura gay” em “O Outro Lado do Paraíso” e condiciona a felicidade da mocinha a um casamento, as escolhas são totalmente dele, nada que se aproxime de alguma encomenda da direção da casa. Afinal, Glória Perez surfou na discussão sobre gêneros em “A Força do Querer”, a novela anterior, com uma abordagem muito útil à aceitação social de transexuais. Também foi na Globo, via entretenimento, que vimos Benedito Ruy Barbosa apresentar o lado mais humano dos sem-terra, de “O Rei do Gado” a “Velho Chico”, onde o coronelismo anacrônico representava o mal, e o discurso progressista da agricultura orgânica fazia as vezes de mocinho, com Domingos Montagner, batizado como “Santo” na trama.

Dessa forma, a Globo segue deixando para a ficção e o humor um debate que mal ousa encarar nos seus noticiários. E é justamente no entretenimento que o tal merchandising social funciona com mais eficiência, quando o espectador está desarmado de argumentos, tomado pelas emoções e pronto para ser hipnotizado por uma boa história ou piada.

Aqui, o link para o clipe “Reaça”

https://globoplay.globo.com/v/6652677/programa/

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Cristina Padiglione

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