Reprise no Canal Viva, ‘Pai Herói’ é uma aula de roteiro e interpretação
Tanto tempo faz que se fala e cultua Janete Clair, sem que tenhamos a real chance de retomar contato com sua obra, que o reencontro proporcionado agora pelo Canal Viva com a reprise de “Pai Herói” é quase um choque. Choque, digo, em razão da modernidade da narrativa, não linear, distribuída em diálogos curtos e de alta precisão na tradução do enredo ali contado. Em seis anos de existência do Viva, “Pai Herói”, que entrou no ar nessa segunda-feira, é a primeira de Janete a ser vista pelo canal, embora há tempos figure na lista das dez mais pedidas pelo público à emissora.
O primeiro capítulo de “Pai Herói”, reprisado nesta terça, às 13h30, é nada menos que uma aula de roteiro de dramaturgia. Há alguns pontos que desapareceriam de uma hipotética versão atual, muito mais relativos à edição do que ao texto ou mesmo à direção de Gonzaga Blota. As alternativas que instigavam o público a mudar de canal ou de tela, em 1979, eram praticamente nulas, comparadas a hoje. Tinha-se então um telespectador infinitamente menos imediatista e muito mais disposto a esperar pelo fim de uma longa sequência de Ballet, até compreender o que aquilo teria a ver com a cena seguinte. Produtores, diretores, narradores e até atores têm pressa, hoje. Quando um Luiz Fernando Carvalho abre uma novela com cancioneiros populares dando um show de Cordel, muita gente acusa “chatice” e lentidão na narrativa, perdendo a chance de apreciar o que há ali. Pena. Em geral, a indústria da TV teme o tablet ou o celular à mão do espectador, e, principalmente, tantas outras telas ao alcance. Em 79, afinal, controle remoto, ainda artigo de altíssimo luxo, servia para acionar outros seis ou sete canais, quando muito, e ninguém tinha disposição de levantar do sofá dez vezes para zapear.
A certeza de que o espectador não sairia dali incentivava a ousadia por narrativas não lineares, como faz Janete ao salpicar sequências de antes e depois do casamento da mocinha Carina Brandão (Elizabeth Savalla) num vaivém que dispensava aquelas legendas que hoje nos dão a sensação de enfiar sorvete na testa, do tipo “horas antes”; “horas depois”; “quatro anos atrás”, etc. Alguns autores chegam a avaliar hoje, o que não é de todo equivocado, que a televisão, à época, ainda não alcançava o tanto de gente que passou a atingir nos anos 1990 e por isso ainda se fazia compreender plenamente nos centros urbanos mais moderninhos, sem necessidade de ceder à compreensão de regiões com outros hábitos e costumes.
Feitos tais descontos, vamos ao que interessa. Temos ali alguns diálogos dignos de Nelson Rodrigues, não pela tragédia embutida nas linhas rodriguianas, mas pelo ping-pong bem traçado entre atores, com a devida tensão requerida por uma interpretação que não caía, ainda, nessa roubada que hoje alguns chamam de “naturalista” (que às vezes se confunde com a expressão de uma alface) nem tampouco se prendia ao overacting acusado principalmente entre o pessoal do teatro que vai para a TV. A mocinha da Savalla se derrete um pouco mais, vá lá, mas vemos, de cara, que a história da heroína não lhe alivia as costas e há razão para sofrimento e lágrimas. Temos os teatrais Paulo Autran (em sua primeira concessão à TV) e Beatriz Segall em tons perfeitos na tela, nem mais nem menos. Lélia Abramo, exibindo toda a sua autoridade em poucas linhas, e um Tony Ramos que ali nos dá a impressão de ter desde sempre sido comovente, tocante, contagiante, nada menos que isso.
A grande aula está sobretudo na conversa entre Tony Ramos e Lima Duarte, o avô, nas pausas, respirações e réplicas entre um e outro, respeitadas sem pressa (“Era tão bom que chegava a ser besta”, comentam, sobre o Pai Herói de André); no embate entre Glória Menezes, a honesta barraqueira do subúrbio Ana Preta, e Maria Fernanda (Gilda Baldaracci), à beira de um túmulo; na confissão de Carina ao padre e na tentativa de contar ao marido, logo após o casamento, que tem uma filha criada pela tia. Janete se encontra com o tom rodriguiano especialmente quando esparrama a inveja provocada pela sobrinha Carina à tia Valquíria (Rosamaria Murtinho) pelo casamento com o cobiçado César (Carlos Zara), em um diálogo cheio de ressentimentos entre Valquíria e a outra tia da moça, Irene (Yara Lins).
Mais moderno, impossível. Como na vida real, as falas se sobrepõem, com alguma velocidade ou não, de acordo com a tensão. Planos e contraplanos dão conta de uma edição bastante ágil para os padrões da época e até de hoje, eu diria, em especial quando vemos atores que desandam a recitar um quase monólogo, mal sendo interrompidos pelo outro.
É um alívio constatar que Janete Clair faz jus à toda a fama que lhe atribuem, a Maga das Oito (novela das 9, na épóca, começava às 20h). Nada pior do que retomar contato com uma lenda e perceber que aquilo é datado, sem chance de servir de referência para o futuro. Atualíssima, dona Janete Clair merece ser revisitada, sem pressa.