Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Rita Cadillac estreia no teatro como Luz Del Fuego, tributo a Marielle e Matheusa

Elisa Romero e Rita Cadillac se revezam no papel de Luz Del Fuego em nova montagem. Fotos: Antonio Marcelo Alves FOCOIMAGE/Divulgação

Responsável pela adaptação de “Lili Carabina”, obra de Aguinaldo Silva, o dramaturgo Júlio Kadetti agora traz  à tona outra personagem icônica enfocada pelo veterano autor de TV, teatro e cinema: Luz Del Fuego volta à tona, com Elisa Romero, jovem atriz de 24 anos, que em breve estará na novela “Jesus”, da Record, e Rita Cadillac, eternamente conhecida como a mais famosa chacrete de Abelardo Barbosa.

Dona de uma agenda lotada de shows onde faz o que a fez famosa, dançar e sensualizar, Rita nunca havia feito teatro. “Luz Del Fuego”, que estreia em 4 de agosto no Teatro Jaraguá, em São Paulo, será sua estreia no métier.

Sob direção de Maciel Silva e Fernando Neves, o espetáculo traz para o contexto atual o discurso libertário da personagem, que sempre foi muito tratada sob a ótica do nudismo, mantendo o viés político e social em segundo plano. Na montagem de Kadetti, essa ordem se inverte, e a nudez, presente em cena, claro, será consequência das reflexões provocadas pelo próprio texto. Desta vez, os holofotes estão sobre a intolerância, mal latente dos nossos dias, o que justifica o tributo prestado pela peça a Marielle Franco, vereadora executada no Rio, e da não-binária (nem homem nem mulher) Matheusa, travesti morto também no Rio, em abril.

Incentivado pela nova montagem, Aguinaldo Silva, que conheceu Luz del Fuego pessoalmente, relançará o livro que escreveu sobre a bailarina, retratando, ainda no início da década de 1980, “o modo violento como vêm morrendo no Brasil, mulheres que romperam bruscamente com os padrões vigentes de feminilidade, ou então questionaram, mesmo de uma forma confusa e inconsciente, os papéis que nossa sociedade de macho lhes reservou.”

O TelePadi acompanhou uma leitura do texto pelo elenco. O contraste entre o sacro e o profano é latente e já se faz notar nos diálogos, que pincelam a religiosidade e a hipocrisia frente à liberdade reivindicada pela protagonista para amar, gargalhar, dançar e até se despir.

O autor, Júlio Kadetti, à frente do elenco, em leitura de texto/Foto: Antonio Marcelo Alves FOCOIMAGE/Divulgação

O papel da moça rica e bem nascida que depois de estuprada pelo cunhado é internada em um hospício de onde foge para o Rio de janeiro para se tornar uma artista mundialmente conhecida, não só pela arte, mas também, e principalmente, pelo discurso libertário sobre aborto, homossexualidade e nudismo, é o sonho profissional de qualquer atriz. No passado o papel, em uma produção para o cinema, depois de disputado por Sônia Braga e Betty Faria, acabou nas mãos de Lucélia Santos, que ganhou o prêmio de melhor atriz em Gramado.

“Se o personagem fosse entregue a uma estrela da televisão, a imagem desta ficaria maior que a imagem da própria Luz e isso diminuiria o impacto político do espetáculo, por isso apostamos em nomes que não tivessem a imagem tão marcada por novelas”, diz Kadetti. “Como autor, eu queria uma atriz que já tivesse sentido na pele a força do preconceito e que trouxesse no corpo e na alma as marcas das agressões que sofreu. Quando conheci Rita Cadillac, pensei, ‘eis aqui uma mulher que acorda todos os dias, olha a vida com olhar de tristeza e diz: você me magoou muito, mas eu ainda acredito em você’.”

Rita confirma: “Como chacrete, a imagem que as pessoas tinham de mim era sempre a da vagabunda, da vadia, havia muito preconceito em relação à minha atividade de dançarina de auditório”.

Na concepção de rir da desgraça, o espetáculo alterna drama e comédia. Quando Luz Del Fuego surge na pele de Rita, a personagem já é apresentada como uma mulher envelhecida, triste e decadente que, fugindo das forças obscurantistas que tomaram conta do Brasil após o golpe de 1964, se refugiou em sua colônia de nudismo onde, pouco tempo depois, foi assassinada.

Ainda na pele de Elisa Romero, a dançarina exibe o viço e a força que seu idealismo libertário desenham na juventude.

Ator que ganhou fama como galã na extinta Rede Manchete, Victor Wagner será um senador da República, embalado em preconceitos e pronto para reforçar a hipocrisia combatida por Luz.

Retrato do elenco

Ana Saguia faz a mãe de Luz, presença fortíssima em cena, ditando os princípios rígidos da família rejeitada pela heroína. Ainda no elenco, estão Leticya Martins, dona de voz potente para cantar uma bela “Ave Maria” à capela, interpretando Luzia, irmã de Luz, Yuri Martins, como seu irmão, e Leoncio Moura como o cunhado do mal. O cast se completa com Cléber Colombo (Rúbia), Arnaldo Gianna (Edgar).

Além de assinar a direção com Fernando Neves, Maciel Silva faz também o travesti Jojô, figura divertida, a princípio, mas capaz de trazer o riso nervoso das grandes tragédias que acometem a comunidade LGBT no Brasil, ainda mais entre as décadas repressoras de 1960/70.

A questão política entra em cena justamente pelo desfecho dessa biografia, que impõe as questões “Quem matou Luz del Fuego? Que matou Marielle? Quem matou Matheusa? Quem matou…?”

“Foi assim em 1917 quando Luz del Fuego nasceu, foi assim em 1967, quando ela foi assassinada, é assim hoje e, se ninguém fizer nada, será assim amanhã, depois, daqui a cem anos”, afirma Kadetti. “Como bem disse Plínio Marcos, ‘não são as histórias que se repetem, mas o Brasil que não muda nunca.’”

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