‘Sob Pressão’ inverte estereótipo do negro: ‘vamos salvar vidas, e não tirar’
Vai-se cada vez mais longe, ainda bem, o tempo em que atores negros só conseguiam trabalho para representar papéis da ala de serviçais ou da bandidagem. David Júnior e Roberta Rodrigues ganham diploma, ofício graduado e, bônus dos bônus, a chance de salvar vidas em “Sob Pressão – Plantão Covid”, onde vivem o doutor Mauro e a enfermeira Marisa. Por trás dessas escalações, que deveríamos tratar como algo corriqueiro e banal, há um gigantesco pacote de transformações em ação, coroado com a oportunidade de dar às crianças negras diante da tela a esperança de se verem representadas em um sonho de futuro possível, como faltou às gerações anteriores, inclusive as de Roberta, 37 anos, e David, 34.
O episódio exibido nesta terça (6) é o primeiro de dois capítulos especiais para homenagear os profissionais de saúde que colocaram suas vidas em risco na linha de frente do combate ao novo coronavírus. O segundo e último vai ao ar na terça-feira (13), após a novela “A Força do Querer”.
Em entrevista à imprensa por zoom na última semana, David resumiu de modo cirúrgico, em resposta a uma pergunta que fiz, sobre o que representa a série para ele e Roberta nesse contexto de representatividade. E celebrou o fato de não precisar camuflar a cabeleira afro de que tanto se orgulha. Disse ele:
“A síntese desse projeto, pra gente, é estar fora do estereótipo, a ponto de representar personagens que estão ali para salvar vidas e não para tirar vidas. A gente foi colocado nesse lugar durante muito tempo, nessa luta, nessa margem da sociedade. Então, estar nesse lugar onde a gente está se predispondo a salvar vidas e não tirar é um divisor de águas na dramaturgia”.
Roberta lamenta que ainda hoje, em 2020, ela seja tão incensada a comemorar a chance de dar representatividade a sua cor por meio de uma profissão graduada, e torce para que sua filha e a filha de David não mais precisem responder sobre um processo que há muito deveria parecer natural, mas ainda não é. “Estou cansada de responder sobre isso”, disse ela.
A cobrança pela representatividade negra ganhou neste tumultuado 2020 um fôlego nunca antes visto, impulsionada por movimentos que vêm de longa data, mas por acontecimentos que tornaram essa busca ainda mais urgente. No nosso caso, pode-se comemorar que ela tenha dado seu primeiro grito não pelos ecos da morte de George Floyd nos Estados Unidos, mas dentro do aparentemente fútil BBB, de onde dois negros ficaram entre os quatro finalistas e um deles, Thelma, saiu vencedora.
Não basta apenas ter outras cores em cena, mas é preciso que as crianças negras se vejam representadas por figuras heroicas na tela, algo que só o esporte e a música, por imposição de talentos natos nesses terrenos, conseguiam fazer até bem pouco tempo atrás.
David e Roberta se juntam à equipe liderada pelo doutor Evandro (Julio Andrade) e a doutora Carolina (Marjorie Estiano), dividida ainda com Bruno Garcia e outros brancos de jaleco branco. Sim, faltavam negros a esta série que retrata os médicos como super heróis e agora homenageia, com ênfase sobre o contexto atual de pandemia, a bravura de profissionais que arriscaram suas vidas na linha de frente no combate ao novo coronavírus.
Abro a seguir a íntegra dos depoimentos de ambos sobre seus papéis no contexto de “Sob Pressão – Plantão Covid”, que tem direção artística de Andrucha Waddington e texto final de Lucas Praízo, em trabalho realizado com os roteiristas Márcio Alemão, Flávio Araújo e Pedro Riguetti, sob consultoria, importantíssima, do médico Márcio Maranhão, alguém que esteve no dia a dia do combate à Covid-19 e foi infectado pelo vírus.
Peço que Roberta e David comentem sobre o avanço a que temos assistido em diversas áreas na busca por ampliar a representatividade da população brasileira, tendo justamente nos negros a sua maior lacuna. Cinema, TV e publicidade, assim como a preocupação de grandes empresas em criar lideranças negras ou afrodescendentes se apresentam hoje de modo mais propositivo do que nunca e peço que eles me digam, do ponto de vista deles, como recebem e percebem essa transformação.
DAVID, doutor Mauro
“Eu acho que para além disso, a gente tem conquistado um espaço necessário, um espaço urgente, essa representatividade se faz necessária há muito tempo, mas nesse lugar de protagonismo com uma graduação acadêmica é algo que eu, morador da Baixada Fluminense, tive dificuldade de me ver, não só de me ver representado, mas de me ver nesse lugar mesmo. Eu me lembro que quando eu era moleque, o meu teto de ascensão social era exatamente a medicina, porque era uma faculdade caríssima em que a pessoa tinha que estudar em tempo integral e as pessoas tinham que trabalhar para estudar. Então, era completamente inviável.
Além de estar hoje fazendo um personagem que tem essa representatividade nesse lugar acadêmico que eu achava inatingível, eu ainda tive um outro presente, que é muito simbólico pra nós, negros, que foi manter o meu cabelo.
No meio dramatúrgico, geralmente as pessoas costumam moldar a gente da maneira como a gente deve ser para eles: ‘ah, se você tiver o cabelo assim, você pode passar uma outra imagem, uma outra mensagem’, então, quando eu cheguei pra conversar com a equipe de caracterização e eles me permitiram manter o meu cabelo, o que significa muito pra nós, negros, foi um presente tão grande, porque por muitos anos na minha vida eu tive que raspar o meu cabelo pra ser meio que uma pessoa invisível ou uma pessoa que não passasse no radar negativo.
Então, estar fora desse estereótipo, dramaturgicamente, isso, pra 56% da população, significa muito. Pra mim é um simbolismo muito grande estar nessa temporada especial, falando sobre uma situação especial que estamos vivendo, não só política, como também de saúde.”
ROBERTA, enfermeira Marisa
“Primeiramente, não poderia não existir essa representatividade nesses episódios especiais e nos próximos porque a gente tá falando de gente, principalmente no momento de Covid, que a gente fala de humanização e a humanização se encontra na maior parte, dentro das comunidades, na zona oeste (Rio), nos lugares onde as pessoas têm menos condições de vida, e também têm menos acesso, por ser preto. Eu sou preta, sou mulher, atriz, vinda de uma favela.
Então , você precisa provar mil vezes, eu já falei que eu provo 100 bilhões de vezes, não tenho problema com isso, mas é uma questão que não tem mais essa necessidade, porque a gente tá falando de humano. Humano, quando você chega no sistema de saúde, você vê todo tipo de pessoa que tem ali, e principalmente as mulheres pretas, porque o sonho da mulher preta da comunidade ou da periferia, que quer ser médica, ela estuda pra ser enfermeira, e eu me apaixonei ainda mais porque eu conversei com o doutor Márcio Maranhão e a Elaine, maravilhosa, uma enfermeira maravilhosa, e quando ela me viu, ela me abraçou, e ela se emocionou.
A gente se emocionou junto, sem falar nada, porque ela entende esse lugar em que nós estamos. Ela é uma profissional, uma enfermeira, muitas vezes as pessoas não sabem que a enfermagem também pede faculdade e não tem nenhuma diferença pro médico, a não ser porque o médico pode operar, é tipo um controlinho, mas um depende do outro, não significa que um seja mais que o outro.
E representar essas meninas foi um presente, não acho pesado, acho lindo, E espero que nos próximos, tanto no ‘Sob Pressão’ ou em outros produtos, eu espero que eu não precise mais falar assim: ‘Roberta, David, como vocês se sentem na representatividade?’ A gente tá em 2020 e isso ainda é assustador. E a maioria das mensagens que eu recebo é esta: ‘Roberta, você está tendo uma oportunidade!’. Aí, eu paro pra pensar e falo: ‘olha o buraco que a gente tem, a defasagem que a gente tem nesse lugar’.
Então, é um privilégio representar os profissionais da saúde, porque eu passei a maior parte da minha vida sem plano de saúde e ia pro [hospital] Miguel Couto desde pequenininha, e eu sei o que é a minha mãe ficar internada e as pessoas só tratarem bem depois de descobrirem que eu sou uma atriz, mas também não tinha condições de pagar o plano de saúde dela, e sei do carinho que essas pessoas têm, da humanidade que essas pessoas têm.
Então, estava na hora, infelizmente, por causa de uma pandemia, foi ali que a gente conseguiu enxergar os profissionais de saúde e entender que o Brasil é diverso e pode ter preto em todos os lugares, brancos, amarelos. A gente recebe o Bob Esponja com o a maior alegria do mundo e ele nem é brasileiro.
Eu queria que fosse a última vez que eu precisasse falar disso, e eu falo pensando nas Elaines, na minha mãe, em todas as mães. Me perguntaram se eu pensei na minha filha pra me emocionar [na primeira cena da série]. Em nenhum momento eu pensei na minha história porque aquilo era tão real, que não tinha como buscar uma memória daquilo que eu não vivi, era uma energia do planeta. Estou entendendo que aquelas pessoas estão deixando de viver a família delas para salvar as nossas.
A minha mãe teve Covid, e que bom que eu conheci alguém pra ajudar ela. Não tem como, numa pandemia, não conseguir entender o sentido da vida e entender que a cor da pele não pode ser maior que nada nessa vida, eu fico ainda muito cansada de ainda ter que responder a essas perguntas, mas respondo porque sei que a minha filha e a filha do David não vão mais precisar responder a isso.
Durante o Criança Esperança, quando a Iza entrou, a minha filha apontou pra tela e falou: ‘Eu quero ser igual a ela’. Eu me emocionei, porque é a gente contra o mundo, um sistema, e eu que vim da favela, sou atriz, não consigo me achar no lugar do glamour e consegui passar pra minha filha o que é de verdade.Pensei: acho que estou conseguindo acertar.”
David comenta ainda que além de ouvir Márcio Maranhao, consultor da série, conversou brevemente com um amigo, caboverdiano, negro, que lhe explicou a importância de um médico negro se impor dentro do ambiente hospitalar, não só para os pacientes,mas também paras os colegas:
“Tive um tempo pra conversar com o Dr. Márcio, e no meu caso, eu tive um personagem especial e muito rápido, amigo meu, cabo-verdiano chamado Lamin, que é hoje chefe de emergência de um hospital referência no Maranhão, negro, que tem a minha idade.
É assim: não conheço muitos médicos e menos ainda negros. Eu lembro que quando eu conheci, em uma reunião, na casa de um amigo meu, Paulinho Lessa, que é ator e é casado com uma cabo-verdiana que é dentista -ela, por ser dentista, já foi uma figura rara no meu radar, eu conheço poucas dentistas, e negras, menos ainda. Era uma reunião de cabo-verdianos dentistas, médicos, advogados, arquitetos, eu fiquei assim: ‘Gente, tem isso aqui?’
E em função de ‘Sob Pressão’, ele me deu um panorama completamente novo, deu um adendo do que o Dr. Márcio já tinha me passado, mas do ponto de vista de um médico negro: como os pacientes confundem ele dentro de um hospital ou não aceitam o fato de ele ser médico, é uma hospital particular e às vezes, alguns clientes não aceitam ser atendidos por ele.
Ele teve que se impor dentro da rede de funcionários. E tem a condição de um médico negro como ele, como tem que se comportar para ser respeitado dento de um ambiente hospitalar?
Ter esse panorama me dá outra perspectiva de posicionamento, de como eu devo me colocar, de como eu devo falar e me comportar enquanto médico.”
Convém notar como David e Roberta levantam pontos que, de tão arraigados no nosso olhar crônico de branquitude, nos são invisíveis, sem que possamos nos dar conta da complexidade camuflada por tantas distorções. A história está se transformando com efeito bem diante dos nossos olhos e não vale a pena perder esse filme ao vivo, com boas chances de participar dele.
Em tempo: David e Roberta são nomes certos na próxima temporada da série, a 4ª, prevista para 2021.
Leia análise sobre o primeiro episódio:
‘Sob Pressão – Plantão Covid’ transporta o espectador para a distopia da vida real