Teorias de WhatsApp ganham espaço na TV aberta: Opinião no Ar despreza fatos
Sabe aquela tese que manda você fugir das fake news do grupo da família no WhatsApp procurando por veículos tradicionais, como jornais, rádios e TV para checar mensagens apegadas a teorias da conspiração? Pois é. Agora, o conteúdo das redes sociais ganhou espaço fixo na TV aberta, em tom de “opinião”.
No Opinião no Ar, que estreou nesta segunda-feira (28) na RedeTV!, sob o comando de Luís Ernesto Lacombe, a máscara tem efeito “mais psicológico” do que clínico, os professores se fazem de vítimas, assim como negros e homossexuais, e os números de mortes por Covid-19 no Brasil, assim como tudo o que vem da OMS (Organização Mundial de Saúde), não merecem crédito.
Cercado de homens, Lacombe contou com a companhia de uma única mulher na estreia, sua parceira fixa, Amanda Klein, que foi constantemente interrompida pelos demais por tentar questionar alguns dos conceitos (ou pré-conceitos) ali apresentados.
Nas chamadas, Lacombe prometeu fazer um programa com posicionamento, o que é uma atitude louvável pela transparência de assumir que seu discurso tem lado. Não é uma franqueza comum a todos que têm uma bandeira.
Só que Lacombe não vê sua oposição a dados científicos e posições políticas diferentes das suas como militância, algo que ele também prometeu que não haveria no programa. Parece aquele sujeito que acha que só as pessoas nascidas e crescidas na mesma cidade onde ele viveu a vida toda não têm sotaque, algo comum em quem tem por hábito ver o mundo apenas sob sua perspectiva.
Há, no entanto, um problema muito mais grave no programa, que é tratar contestação aos fatos como opinião. Quando se suspeita de números oficiais de vítimas da Covid-19, é preciso apresentar algo que sustente essa desconfiança, ou então a “opinião” corre o risco de ser só mais um achismo das conversas no Zap.
Ao ouvir o médico Roberto Zeballos reduzir o efeito do uso de máscara, Amanda questionou o doutor sobre os motivos que teriam resultado em um controle tão mal-sucedido da pandemia no Brasil. Mas para Zeballos, o controle não deu errado. Amanda insiste, cita o número de mortos, que já ultrapassou 140 mil, e o médico, com endosso de Lacombe, suspeita dos números, resgatando outra tese de WhatsApp: a de que muita gente recebeu atestado de óbito por Covid, tendo morrido por outras causas.
Assim não há opinião que pare em pé. Zeballos é um dos defensores da tese de que o coronavírus veio de um laboratório fabricado na China, que escondeu a informação do resto do mundo.
“Quarentena não é cura, quarentena não é vacina”, reforçou Lacombe. Para ele, o fato de todas as profissões já terem retornado ao normal (o que também não é verdade), menos as escolas, “talvez” indique “que o Brasil não priorize o ensino”. Isso foi dito com base em uma discussão sobre a pesquisa Data Folha que apontou que 75% acreditam que as escolas devem continuar fechadas.
A discussão de que bares e restaurantes já reabriram, ainda com restrições, mas as escolas não, despreza o fato de que a escola é uma obrigação de responsabilidade de aluno e professor. Já ao bar ou ao restaurante, vai quem quiser.
Parece óbvio dizer isso, mas é um dado que os defensores da reabertura das escolas nunca mencionam. O doutor cita que o isolamento ocorreu para evitar a superlotação do sistema de saúde, mas agora, já há uma compreensão sobre meios eficazes para combater o vírus, e cita então um estudo seu a ser publicado. Mas como se explica agora a volta do fechamento de bares e restaurantes na França, Inglaterra e Espanha, por causa de uma segunda onda de contaminação? “É que gato escaldado tem medo de água fria”, ele justifica.
A fé é um ato de crença. Você pode acreditar que Jesus ressuscitou no terceiro dia após a crucificação, ou não. Não há, como diria o Pedro Pedreira, aquele aluno do professor Raimundo vivido por Francisco Milani e agora, por Marco Ricca, documentos que provem a ressurreição e ascensão aos céus.
Mas negar a ciência e estatísticas de profundo trabalho jornalístico nem crença é. A Terra é redonda e há provas concretas sobre o fato. Dizer que ela é plana não é opinião, como defendem alguns, mas a mais pura negação da ciência, absoluto desrespeito com pesquisadores, acadêmicos e médicos que estão na linha de frente de combate ao vírus.
Além de tratar como opinião aquilo que é uma contestação a fatos, documentos e estudos científicos, o programa não exibe análises diversas, e quem tenta questionar a unanimidade presente, como Amanda, pode ser atropelado sem concluir sua fala.
Sim, Nelson Rodrigues já falou sobre isso de modo mais sucinto e melhor.
Lacombe vibrou com a chegada do programa ao topo do Twitter. Motivos para repercussão não faltaram. O ranking não distingue reprovações de aprovações nesse universo onde tudo é considerado engajamento, na melhor síntese do “falem mal, mas falem de mim”.