Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Tributo de Bial a Chico Anysio evidencia retrocesso do país

Bruno Mazzeo, Tom Cavalcante e Pedro Bial em homenagem a Chico Anysio / Reprodução

Pena que o Conversa com Bial vá ao ar muito mais tarde do que já se queixava Jô Soares quando o fim de noite era seu, fosse no SBT ou na Globo. Ainda que o programa atual disponha da possibilidade de ser visto a qualquer hora, via GloboPlay, algumas de suas edições são muito essenciais para ficarem restritas a uma plateia privilegiada que pode pagar para ver a íntegra das entrevistas ou acessar o serviço –o Conversa com Bial fica aberto a não-assinantes no GloboPlay, mas fatiado em trechos.

Na quinta (17) e na sexta-feira (18), o programa nos brindou com uma conversa sobre Chico Anysio, cuja morte completa dez anos na quarta-feira, 23 de março. E revisitar sua trajetória no atual contexto, por meio de preciosos relatos de quem esteve muito próximo do mestre, jogou na cara do espectador um indício incontestável de retrocesso: nesse jogo de tabuleiro que conta a história do país, voltamos 200 casas e fomos parar em algum lugar anterior ao prenúncio do fim da ditadura militar.

“O Chico sabia nos pôr pra rir de nossas próprias misérias e ridículos. E desde sua morte, uma década atrás, vem ficando mais difícil rir pelos mesmos motivos, de mais ridículo e menos engraçado que o Brasil ficou”, disse Bial.

Gênio digno do título, o ator, redator e criador de mais de 400 personagens (entre os que interpretou e os que delegou a terceiros) teve sua trajetória narrada e comentada por um time de convidados que viveu intensamente ao seu lado, a saber: Tom Cavalcante, Heloísa Perissè, Cininha de Paula (diretora e sobrinha) e os filhos Nizo Neto, André Lucas e Bruno Mazzeo.

A história que nos coloca aquém do passado é sobre a visita de Salomé, personagem criada para dialogar com o então presidente João Figueiredo, ao Palácio do Planalto, para uma apresentação ao próprio Figueiredo, à sua mulher, dona Dulce, e a alguns poucos súditos.

O programa resgata imagens da apresentação e raras cenas de Figueiredo se permitindo gargalhar. Apesar do evidente tom crítico da gaúcha ao último presidente do governo militar, Figueiredo, a quem ela tratava por “João Baptista”, não escondia sua admiração pela personagem.

“O que Salomé diria se ligasse para o Jair hoje?”, quis saber Bial.

“A Salomé não tem com o Jair Bolsonaro a intimidade que ela tinha com o Figueiredo. Ela não ligava pra um político qualquer“, explica Mazzeo. “Ela ligava para o Figueiredo porque ela tinha sido professora do Figueiredo.”

“E por que o nome Salomé?”, completou Nizo Neto. “Porque foi Salomé quem cortou a cabeça de João Batista. É por isso que ela falava: ‘Ou faço a cabeça de João Batista, ou não me chamo Salomé'”.

Como Salomé, Chico Anysio abraça João Baptista Figueiredo, ao lado de sua mulher, dona Dulce, no Palácio do Planalto, em 1983 / Reprodução

Após assistirem às imagens da visita de Salomé ao Palácio do Planalto –e Mazzeo faz questão de dizer que Figueiredo “mandou chamar a Salomé, não o Chico Anysio”–, onde vemos Figueiredo e dona Dulce abraçando Chico, Bial deu a letra sobre o evidente retrocesso que vivenciamos hoje: “Considerando as relações de hoje do poder com a arte, o jornalismo, [isso foi] civilizadíssimo, não?”

Os convidados concordam. “O presidente Figueiredo levava super a sério”, emenda Mazzeo. “Reclamava, ligava. Teve um episódio que a Salomé desligou o telefone na cara do Figueiredo. Ele ficou uma fera. Ele ligou pro doutor Roberto [Marinho, dono da Globo]: ‘Não admito que ela desligue o telefone na minha cara!’ Todas as críticas ali de anos [tudo bem], mas isso ele não admitia”, conta Mazzeo.

HUMOR POLÍTICO

Anysio foi um visionário em todos os sentidos, e Bial resgata uma cena da “Escolinha do Professor Raimundo” de 1993, em que Aldemar Vigário, personagem de Lúcio Mauro, questiona sobre “um deputado que está querendo a volta da ditadura”. “Como pode um civil querer a volta da ditadura?”, questiona. Ao que o mestre responde: “É o Bolsonaro”. “Só que ele não é civil, é militar reformado.” “Ah, então é por isso”, ri Vigário.

O apresentador provocou Mazzeo sobre o modo discreto do pai em relação a escolhas políticas, o que lhe permitia “bater em Chico e bater em Francisco” com o mesmo peso.

Para Mazzeo, o humor político não estava presente no início da trajetória do pai na TV, ou estava mais camuflado nas críticas sociais. “A verdade é que eu acho que o humor, nos primeiros anos, não tinha uma crítica política muito forte, é muito mais social. No próprio ‘Chico City’, por mais que tivesse ali o político corrupto, era muito mais pelo social. A política começa a aparecer mais ali pela abertura da ditadura, a Salomé, o próprio Justo Veríssimo, personagem altamente político, de crítica política, mas ele sempre teve alguns cuidados, por exemplo, de não declarar voto, o que dá uma credibilidade à crítica.”

CADA TIPO,UMA HISTÓRIA

André Lucas rememora, ao longo das duas edições da Conversa, como surgiram alguns dos personagens clássicos criados pelo pai, com detalhes sobre o Bozó, sujeito que ostentava crachá da Globo para conseguir o que quisesse. “Houve um tempo em que crachá da Globo valia mais que carteira da polícia”, lembra. E cita ainda como nasceram Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro (inspirado em Beto Carrero), Coalhada, João Canabrava e Justo Veríssimo, entre outros.

“Nesse caso, a realidade brasileira superou a caricatura”, diz Bial, em relação ao político que “odeia pobre”. Dizia que já tinha sido pobre, “mas honrado, nunca”.

Dona do maior acervo de cenas com o humorista, a Globo esbanjou cenas dos 200 e tantos personagens vividos por ele ao longo da conversa com seus pupilos.

Quem não viu e tiver chance de ver no GloboPlay, por favor, veja. Vale muito a pena.

 

 

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