Tributo de Bial a Chico Anysio evidencia retrocesso do país
Pena que o Conversa com Bial vá ao ar muito mais tarde do que já se queixava Jô Soares quando o fim de noite era seu, fosse no SBT ou na Globo. Ainda que o programa atual disponha da possibilidade de ser visto a qualquer hora, via GloboPlay, algumas de suas edições são muito essenciais para ficarem restritas a uma plateia privilegiada que pode pagar para ver a íntegra das entrevistas ou acessar o serviço –o Conversa com Bial fica aberto a não-assinantes no GloboPlay, mas fatiado em trechos.
Na quinta (17) e na sexta-feira (18), o programa nos brindou com uma conversa sobre Chico Anysio, cuja morte completa dez anos na quarta-feira, 23 de março. E revisitar sua trajetória no atual contexto, por meio de preciosos relatos de quem esteve muito próximo do mestre, jogou na cara do espectador um indício incontestável de retrocesso: nesse jogo de tabuleiro que conta a história do país, voltamos 200 casas e fomos parar em algum lugar anterior ao prenúncio do fim da ditadura militar.
“O Chico sabia nos pôr pra rir de nossas próprias misérias e ridículos. E desde sua morte, uma década atrás, vem ficando mais difícil rir pelos mesmos motivos, de mais ridículo e menos engraçado que o Brasil ficou”, disse Bial.
Gênio digno do título, o ator, redator e criador de mais de 400 personagens (entre os que interpretou e os que delegou a terceiros) teve sua trajetória narrada e comentada por um time de convidados que viveu intensamente ao seu lado, a saber: Tom Cavalcante, Heloísa Perissè, Cininha de Paula (diretora e sobrinha) e os filhos Nizo Neto, André Lucas e Bruno Mazzeo.
A história que nos coloca aquém do passado é sobre a visita de Salomé, personagem criada para dialogar com o então presidente João Figueiredo, ao Palácio do Planalto, para uma apresentação ao próprio Figueiredo, à sua mulher, dona Dulce, e a alguns poucos súditos.
O programa resgata imagens da apresentação e raras cenas de Figueiredo se permitindo gargalhar. Apesar do evidente tom crítico da gaúcha ao último presidente do governo militar, Figueiredo, a quem ela tratava por “João Baptista”, não escondia sua admiração pela personagem.
“O que Salomé diria se ligasse para o Jair hoje?”, quis saber Bial.
“A Salomé não tem com o Jair Bolsonaro a intimidade que ela tinha com o Figueiredo. Ela não ligava pra um político qualquer“, explica Mazzeo. “Ela ligava para o Figueiredo porque ela tinha sido professora do Figueiredo.”
“E por que o nome Salomé?”, completou Nizo Neto. “Porque foi Salomé quem cortou a cabeça de João Batista. É por isso que ela falava: ‘Ou faço a cabeça de João Batista, ou não me chamo Salomé'”.
Após assistirem às imagens da visita de Salomé ao Palácio do Planalto –e Mazzeo faz questão de dizer que Figueiredo “mandou chamar a Salomé, não o Chico Anysio”–, onde vemos Figueiredo e dona Dulce abraçando Chico, Bial deu a letra sobre o evidente retrocesso que vivenciamos hoje: “Considerando as relações de hoje do poder com a arte, o jornalismo, [isso foi] civilizadíssimo, não?”
Os convidados concordam. “O presidente Figueiredo levava super a sério”, emenda Mazzeo. “Reclamava, ligava. Teve um episódio que a Salomé desligou o telefone na cara do Figueiredo. Ele ficou uma fera. Ele ligou pro doutor Roberto [Marinho, dono da Globo]: ‘Não admito que ela desligue o telefone na minha cara!’ Todas as críticas ali de anos [tudo bem], mas isso ele não admitia”, conta Mazzeo.
HUMOR POLÍTICO
Anysio foi um visionário em todos os sentidos, e Bial resgata uma cena da “Escolinha do Professor Raimundo” de 1993, em que Aldemar Vigário, personagem de Lúcio Mauro, questiona sobre “um deputado que está querendo a volta da ditadura”. “Como pode um civil querer a volta da ditadura?”, questiona. Ao que o mestre responde: “É o Bolsonaro”. “Só que ele não é civil, é militar reformado.” “Ah, então é por isso”, ri Vigário.
O apresentador provocou Mazzeo sobre o modo discreto do pai em relação a escolhas políticas, o que lhe permitia “bater em Chico e bater em Francisco” com o mesmo peso.
Para Mazzeo, o humor político não estava presente no início da trajetória do pai na TV, ou estava mais camuflado nas críticas sociais. “A verdade é que eu acho que o humor, nos primeiros anos, não tinha uma crítica política muito forte, é muito mais social. No próprio ‘Chico City’, por mais que tivesse ali o político corrupto, era muito mais pelo social. A política começa a aparecer mais ali pela abertura da ditadura, a Salomé, o próprio Justo Veríssimo, personagem altamente político, de crítica política, mas ele sempre teve alguns cuidados, por exemplo, de não declarar voto, o que dá uma credibilidade à crítica.”
CADA TIPO,UMA HISTÓRIA
André Lucas rememora, ao longo das duas edições da Conversa, como surgiram alguns dos personagens clássicos criados pelo pai, com detalhes sobre o Bozó, sujeito que ostentava crachá da Globo para conseguir o que quisesse. “Houve um tempo em que crachá da Globo valia mais que carteira da polícia”, lembra. E cita ainda como nasceram Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro (inspirado em Beto Carrero), Coalhada, João Canabrava e Justo Veríssimo, entre outros.
“Nesse caso, a realidade brasileira superou a caricatura”, diz Bial, em relação ao político que “odeia pobre”. Dizia que já tinha sido pobre, “mas honrado, nunca”.
Dona do maior acervo de cenas com o humorista, a Globo esbanjou cenas dos 200 e tantos personagens vividos por ele ao longo da conversa com seus pupilos.
Quem não viu e tiver chance de ver no GloboPlay, por favor, veja. Vale muito a pena.