‘Um Lugar ao Sol’ expõe estrago causado pelo etarismo, e não só aos mais velhos
Desde os primeiros capítulos, “Um Lugar ao Sol” vem martelando delicadamente, mas com profundidade, no etarismo. Mal que pode afetar a saúde mental –e física– de pessoas acima dos 50 anos, com risco de até acelerar a morte de suas vítimas, o preconceito a pessoas mais velhas não faz apenas mal ao alvo da discriminação. É uma praga que contamina o convívio social e familiar, causando também grande estrago aos agentes da ação, no caso, de quem se acha mais jovem.
A novela de Lícia Manzo, sob direção de Maurício Farias, tem tocado nesse drama por meio de duas frentes: a do núcleo de Andréa Beltrão e Fernanda Marques, mãe e filha, e de Marieta Severo, que apesar de todo o talento e disposição, custa a encontrar um emprego por ter mais de 70 anos.
O enredo de Noca (Marieta) é o aspecto normalmente mais discutido do etarismo, por atingir as pessoas no lado mais prático do dia a dia, e é portanto mais visívil a olho nu.
Já as implicâncias de Cecília (Fernanda) com a mãe, Rebeca (Andréa), sofrem de maior invisibilidade social e talvez por isso gerem até mais problemas, como se viu no capítulo desta sexta (3) do folhetim da Globo, quando a universitária, moça normalmente recatada na maneira de se vestir, teve um surto e, muito alcoolizada, acabou por sofrer um estupro.
A sequência foi consequência imediata da revolta de Cecília ao encontrar uma correspondência de Felipe (Gabriel Leone), ex-namorado de sua amiga, para Rebeca. A menina não se conforma com o que trata como inadequação da mãe à idade que tem, e a culpa por ter seduzido o rapaz, 30 anos mais jovem.
Em cenas anteriores, Cecília já se mostrava incomodada com a presença de Rebeca entre seus amigos “xofens”. “Olha a sua idade”, diz a garota. Parece sofrer com o sucesso de Rebeca, ex-modelo, linda nos seus 50 anos, e esconder o receio de se enxergar “inferior” àquela mulher de quem não herdou um décimo do poder de sedução, característica aprimorada pelo ofício de quem passou a vida a posar para lentes fotográficas e flashes.
É evidente que a moça tem questões muito mal resolvidas com o assunto, mas a mãe, exercendo a culpa materna inerente a toda matriarca (dizem que quando nasce uma mãe, a culpa nasce junto, e é verdade), corrobora a discriminação da moça ao lhe dar razão e prometer que não mais estará entre seus amigos. Erra na superproteção à cria e corrobora de modo muito nocivo o preconceito da filha.
Cecília precisa de terapia, mas, como de costume, quem se submete a tratamento psíquico é a pessoa atingida pelo sujeito mais problemático, que permanece no seu mundo de convicções equivocadas. Assim, Rebeca agora se entrega a deliciosas sessões com Ana Virginia, personagem que nos brinda com a presença de Regina Braga em cena.
Enquanto isso, Cecília segue certa de que é uma vítima da “falta de noção” da mãe.
A melhor terapia para Cecília seria mesmo passar um período com Noca, a adorável cozinheira de Marieta Severo, figura altiva e fiel a valores de inclusão social e honestidade com seus princípios. Noca, sim, daria a Cecília conselhos muito melhores que os de Rebeca, mostrando à garota que o avanço da idade, por si só, não é nem pode significar imposição de limites, principalmente no terreno do coração e da mente. Na liberdade do pensar, há muito octagenário mais jovem que meninos de 15.
Se algumas restrições físicas surgem, principalmente por questões hormonais, o que aparece com competência no retrato de Rebeca, os avanços da maturidade, do conhecimento e da franqueza amparam eventuais desequilíbrios biológicos.
Como respondeu minha mãe ao ser xingada de “velha” por um estrupício, uma vez, no trânsito: “Se você tiver sorte, também chega lá”.