Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Vítima da vida real, ‘Velho Chico’ dispensa a palavra FIM

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Não houve FIM, inscrição que obrigatoriamente sela as telenovelas, que anunciasse o encerramento de ‘Velho Chico’, novela de Benedito Ruy Barbosa, Edmara Barbosa, Bruno Luperi e Luiz Fernando Carvalho, encerrada nesta sexta, dia 30 de setembro. .

Analogia à eternização do protagonista, a ausência da palavra endossa o propósito de manter viva a imagem do ator que tentou nos dar um herói, nem que fosse na ficção.

Era para ser uma novela que nos arrancasse do realismo nada fantástico promovido por tanta encrenca estampada nos noticiários. Corrupção, delação, facção criminosa, favela… ‘Velho Chico’ deveria ser uma rota de fuga de tudo isso, repertório que frequentou com pretensão realista as novelas anteriores do horário, ‘Babilônia’ e ‘A Regra do Jogo’. Veio Belmiro dos Anjos, personagem magistralmente vivido por Chico Diaz. Figura otimista, forte, ética, morreu de morte matada pelo traste do Ciço (Marcos Palmeira), capanga do coronel que se opunha a essa gente disposta a reduzir discrepâncias sociais. De todo modo, Belmiro seria uma imagem presente na memória afetiva de público e personagens, ao longo de todo o enredo de Benedito Ruy Barbosa, e de fato foi. Era pai dos também idealistas Santo dos Anjos (Domingos Montagner) e Bento (Irandhir Santos) – o primeiro, da paz absoluta, alçado à condição de herói nacional que tanto nos falta. Mas, diacho, quis a ironia tão sem graça do destino que, de novo, a realidade da qual tentávamos fugir nos impusesse a ausência desse herói. Santo dos Anjos foi mantido, por força da vontade da equipe de ‘Velho Chico’, até o último olhar que o telespectador pudesse lançar por meio de seus olhos imaginários. Domingos, morto nas águas do São Francisco duas semanas antes desse fim, foi vencido pelo cenário da trama que eternizou o ator e seu herói.

Sonho antigo de Benedito, o projeto se consumou como novela das nove, inicialmente prevista para as seis, sob o comando do poeta Luiz Fernando Carvalho. Vá lá, há quem diga que ele é um carrasco no set, que o clima nas gravações com ele é coisa pesada, mas a verdade é que tenho ouvido atores e atrizes ao longo dos últimos dez anos, no mínimo, apenas se derretendo em elogios a esse sujeito. A quem me diz que ele é cruel, de tão exigente, digo, de pronto, que os atores o amam como ele é. Simplesmente o idolatram, como pude testemunhar na primeira apresentação de ‘Velho Chico’, num galpão onde o diretor extrai a essência de seu elenco, com longas sessões de preparação. Na ocasião, houve quem derramasse lágrimas, puxadas por Fabíula Nascimento, ao narrar a comoção alcançada pelo trabalho lá realizado.

A verdade é que alguns atores só funcionam na mão dele. Leonardo Vieira despertou odes de aplausos em ‘Renascer’ (1993), quando surgiu para a fama, nas mãos do diretor, de uma forma como nunca mais voltaria a ocorrer em toda a sua carreira. Em ‘Velho Chico’, vimos Rodrigo Santoro no seu melhor momento, Christiane Torloni como há muito não víamos, Camila Pitanga buscando, dia após dia, o tom que visceralmente apareceu só depois de longa jornada de sua Terê, Marcos Palmeira sendo de novo o matuto do sertão, sem nada remeter aos similares anteriores, ambos em novelas do mesmo Benedito (‘Pantanal’ e ‘Renascer’), vimos a valorização de uma Selma Egrei, de um Umberto Magnani, e vimos novatos como Lucy Alves, Giulia Buscaio e Gabriel Leone atuando à altura de um Domingos Montagner, de um Irandhir Santos e de uma Dira Paes (como bem abordou Maurício Stycer em post no seu blog, há dois dias). Choramos com o Capitão Rosa de Rodrigo Lombardi, com a Eulália de Fabíula Nascimento, com a Piedade de Cyria Coentro e Zezita Matos, com a adorável Doninha de Bárbara Reys e Suely Bispo. Mas, sobretudo, reverenciamos Enrique Diaz e seu Belmiro dos Anjos, personagem morto há tantos capítulos e capaz de afetar o desfecho da trama. A lamentar, apenas, mas a lamentar muito, a presença rarefeita de José Dumont e Marcélia Cartaxo, ambos subaproveitados, em cena.

Muitas batalhas foram travadas, debatidas e refletidas ao longo desse caminho, entre opressores e oprimidos, o que é justo ou não, a lei que vale para uns e não para outros, como bem disse Miguel (Gabriel Leone) neste último capítulo. O barroco impresso por Luiz Fernando, a peruca do Saruê de Antonio Fagundes, o figurino que pedia reflexão da plateia, a irretocável trilha sonora, com Tom Zé e Bethânia no topo, sem poupar espaço à Oração de São Francisco e também às manifestações culturais que beiram o São Francisco: muitos foram os sinais que nos carregaram para longe do ‘Jornal Nacional’, sem contudo nos alienar dos dramas que nos cercam. Ao contrário. Fomos levados a pensar sobre esse país que nos emoldura, dia a dia, por meio da pequena Grotas do São Francisco, microcosmo de um Brasil que já foi filmado pelos olhos da Bole Bole de ‘Saramandaia’, da Sucupira de ‘O Bem Amado’ ou da Asa Branca de ‘Roque Santeiro’, um universo de Dias Gomes também frequentado por Aguinaldo Silva. Vimos, nesse desfecho, aliás, um momento quase Cândido Alegria, último personagem do grande Armando Bógus, quando o delirante Carlos Eduardo (Marcelo Serrado) se perde em meio a tamanha cobiça. A referência a ‘Pedra Sobre Pedra’ também encontra eco nos créditos do diretor, presente também naquela produção.

De um salto mais exagerado faz parte a transforação do próprio Ciço, que até a argolinhas de brincos nas orelhas aderiu. Seria muita coisa para um cidadão que, até dois capítulos atrás, sem longa passagem de tempo, repudiava a presença da mulher no bar como cantora. O melhor desse ângulo, no entanto, está no tom ‘Bye Bye Brazil’ tomado por Ciço e ‘Darva’ (Mariene Bezerra de Castro) e na decoração do caminhãozinho que leva o casal a rincões distantes desse país para amealhar alguns trocados por sua cantoria.

Há quem vá questionar o fato de Santo e Terê se casarem, sem perguntar por que os filhos (Olívia/Giulia Buscacio e Miguel/Gabruel Leone) não chegaram ao casamento. Os pais não teriam adiado? Não teriam tentado falar com os dois? Essas são questões para farejadores de erros, e, vá me desculpar, mas estamos aqui para celebrar os acertos. #VelhoChico dispensava a lógica do realismo, ainda que a realidade tenha lhe dado um tranco, como deu.

E todo o texto supostamente referente à presença espiritual, embora não física, de Martin (Lee Taylor) pode ser sentido como se fosse dirigido a Domingos. Um corpo que se foi, disse Ceci (Luci Pereira) a um redescoberto Afrânio (Antonio Fagundes), mas um espírito que continua presente.

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Cristina Padiglione

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