Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Vale Tudo’ completa 30 anos e refaz a pergunta: ‘Vale a pena ser honesto no Brasil?’

Beatriz Segall e Cássia Kis em reencontro promovido há alguns anos pelo canal Viva

Há exatos 30 anos, estreava na Globo a novela “Vale Tudo”, sempre atribuída a Gilberto Braga, mas escrita a seis mãos – com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. A efeméride trará de volta, a partir do dia 18 de junho, pelo canal Viva, o enredo de Raquel e Maria de Fátima Acioly, Regina Duarte e Glória Pires, mãe e filha. Será a segunda passagem do título pelo Viva, que nasceu em 2010, tendo justamente “Vale Tudo” como primeiro sinal de seu potencial de engajamento junto ao público, inclusive pelas redes sociais.

Foi a pergunta “Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?”, proposta por Gilberto, que norteou a história. A questão nasceu de um encontro de família em que um padrinho do dramaturgo era tratado como “babaca” porque foi delegado na Baixada Fluminense e em Belém, sem sequer ter conseguido comprar um apartamento na Vieira Souto, um dos endereços mais caros do país, no Rio.

Confira a seguir 14 itens, entre curiosidades e informações, que contextualizam o valor de “Vale Tudo” para história da TV brasileira. A abertura já compunha a proposta da história, com Gal Costa cantando “Brasil, Mostra a tua Cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim / Brasil, qual é o teu negócio? O nome do teu sócio? Confia em mim”, letra de Cazuza. E o país parou para se olhar no espelho, nem sempre com cada indivíduo reconhecendo seus defeitos, mas sempre os do vizinho.

  1. Em uma das primeiras reuniões sobre a escalação de elenco, o diretor Paulo Ubiratan foi lendo cada nome de personagem e seu respectivo intérprete. Boa parte da lista estava fechada, mas faltava definir quem seria a megera Odete Roitman, papel recusado inicialmente por Odete Lara. “Beatriz Segall?”, ele sugeriu, para a pronta concordância de todos – menos de Daniel Filho, então diretor da Central Globo de Produção, que mesmo após o grande sucesso da atriz no papel, achava que o êxito era mais do personagem do que dela.
  2. Tratada como uma das maiores vilãs da história das telenovelas, Odete Roitman morreu a apenas 12 capítulos do fim da novela, mas o suspense e a comoção em torno do assunto tomaram uma dimensão tão grande, que dão a percepção de que o mistério se prolongou por muito mais tempo.
  3. A cena em que Leila (Cássia Kis) é revelada como assassina foi gravada a poucas horas da exibição. E como não havia internet na época, o segredo foi mantido até o momento em que o capítulo foi ao ar.
  4. A sequência em que o corrupto Marco Aurélio (Reginaldo Faria) foge do país dando uma banana com os braços, diretamente da janela de seu jatinho particular, bem na cara do Cristo Redentor, quase foi reproduzida, anos mais tarde, em “Insensato Coração”, do mesmo Gilberto Braga, com Herson Capri no papel do vilão. Mas, quando daria sua banana, suas mãos foram algemadas. Gilberto Braga então sustentou que o país já não suportava, em 2011, a impunidade explicitada na cena de 89, quando a novela acabou. Será que o Brasil mudou de alguma forma?
  5. A Globo chegou a vender os direitos de produção de “Vale Tudo” para a Telemundo, canal hispânico exibido nos Estados Unidos, e uma versão em espanhol foi realizada para a emissora como “Vale Todo”. Não deu certo. O público mexicano, em especial, maioria dos hispânicos nos EUA, não aceitava tamanha maldade de uma filha, Maria de Fátima, com a mãe, Raquel, e a rejeição foi implacável.
  6. O alcoolismo de Heleninha Roitman (Renata Sorrah) mereceu muita atenção na época, tempo em que nem toda novela trazia merchandising social e esse termo nem era usado. Em 2010, no entanto, quando o Viva exibiu a novela, já nessa era de redes sociais, o exagero dramático de toda a embriaguez e torpor de Heleninha geraram uma série de mêmes.
  7. Por falar em merchandising social, foi a primeira novela que abordou a questão dos direitos civis entre homossexuais, por meio do par interpretado por Lala Deheinzelin e Christina Proshaska, donas de uma pousada em Búzios. Quando uma delas morria e seu irmão se recusava a legalizar para a viúva os bens daquela sociedade, levantou-se toda a questão dos direitos que a outra teria sobre sua herança.
  8. “Brasil”, a música de abertura, de Cazuza, George Israel e Nilo Romero, foi gravada por Gal especialmente sob encomenda para a novela. Ao livro “Teletema”, de Guilherme Bryan e Vincent Villari, ela conta que gravou a canção em tom de protesto mesmo. Preocupado com o verso “o meu cartão de crédito é uma navalha”, até o departamento comercial pressionou o então chefão Boni para evitar a canção ou arrefecer seu tom, mas ninguém cedeu e a abertura, com imagens clipadas de rostos da nação misturados aos do elenco, já prenunciava o impacto da produção.
  9. Foi por insistência de Gilberto Braga, talvez o mais antenado dos autores de novela no quesito trilha sonora, que “Faz parte do meu Show”, de e por Cazuza, entrou na trilha, como canção de Solange, uma Lídia Brondi fofíssima ostentando franjinha curta, outro hit que mexeu com o Twitter durante a exibição do Viva em 2010.
  10. Em 2010, o uso da palavra “transar” como “fazer” ou “praticar” (exemplo: “eu não transo drogas”) virou alvo de chacota entre os telespectadores, como expressão dos anos 80, assim como as ombreiras, os cortes de cabelos com mullets e as cabeleiras armadas.
  11. Ainda durante a primeira exibição de “Vale Tudo” pelo Viva, uma série de perfis de personagens nasceram no Twitter para comentar a novela e outros assuntos da vida nacional. O mordomo Eugênio (@mordomoeugenio), personagem de Sérgio Mamberti que servia na mansão de Odete Roitman, está aí até hoje, com mais de 47 mil seguidores.
  12. Em 1988, o Brasil vivia dias de Constituinte, assembleia coordenada pelo então deputado Ulysses Guimarães, para a formulação da nova Constituição. Mais que isso, o país vivia o penúltimo ano do governo Sarney, com inflação em alta, grande dificuldade econômica e a enorme ansiedade de voltar a votar para presidente da República no ano seguinte, após 29 anos de jejum nas urnas relativas ao cargo máximo do poder executivo.
  13. O cafajeste César (Carlos Alberto Ricelli) formava uma dupla de sucesso com a ambiciosa Fátima, e não houve, como todo fim de novela, a manjada redenção dos malvados. Os vilões todos se davam bem, de acordo com seus códigos de (ausência) de ética.
  14. Como motor de discussão sobre honestidade no “país do jeitinho”, a novela suscitou teses de mestrado como a do jornalista Wesley Vieira, que abordou o tema na monografia “A Ética e a Honestidade no Brasil através da telenovela Vale Tudo”. O país se comoveu, se emocionou e mal se deu conta de que via a si próprio no espelho – em geral, sempre se vê o desonesto na terceira pessoa.

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Cristina Padiglione

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