‘Senna’ – parte 2: Minissérie acerta nas pistas, mas erra fora delas
Há coisa de cinco dias, escrevi aqui com entusiasmo sobre a minissérie “Senna”, alvo de R$ 250 milhões de investimentos, o mais caro produto feito pela Netflix no Brasil.
A plateia há de perceber que o dinheiro foi bem aplicado naquilo a que chamam de audiovisual, e digo audiovisual no gigantismo do termo – a tela contemplada pelas melhores imagens e qualidade de áudio, na consonância com caracterização de atores, figurino, fotografia e cenografia, tudo impecável.
Mas há um elemento crucial nessa história, normalmente “invisível” a ouvidos nus e do qual depende todo o funcionamento restante, que atende por “roteiro”.
É o item que, quando perfeito, não desperta atenção do público, embalado na organicidade de seus diálogos e do enredo. Quando falha, no entanto, abusando da artificialidade, faz os ouvidos do espectador se levantarem como os dos cães uivantes diante de determinados ruídos.
Ora ora, o roteiro, esse ser tão essencial à engrenagem final, é justamente o fator mais suscetível a intervenções de amadores, ou seja, aqueles que não entendem do riscado, mas acham que podem dar palpites à vontade no que fulano ou beltrano diria e faria.
“Senna” infelizmente fica aquém do que poderia ser, e sem que se gastasse um centavo a mais, se os dialogos fossem mais orgânicos, menos tatibitati, especialmene nas sequências que dão voz ao protagonista em sua vida pessoal. É certo que o problema aqui não seja a falta competência dos roteiristas, vítimas de interferências que cenógrafos, figurinistas, fotógrafos, músicos ou maquiadores não sofrem em seu trabalho no set, ou não nas mesmas proporções.
Efetivamente, a produção da Gullane nos motiva a ver os seis capítulos com a mesma voracidade com que Ayrton Senna se dedicava ao ofício, mesmo que você, telespectador, já saiba que o mocinho morrerá no final. Isso é fato. Mas poderia ser bem mais interessante se fosse permitido ao heroi se apresentar como ser humano que foi, com suas escolhas – dentro e fora das pistas.
A desproporção gritante de exposição e importância dadas aos romances com Xuxa e Adriane Galisteu é só um flagrante do nível de interferência num enredo que poderia ser menos encenado de acordo com a vontade da família, parceira na produção da obra, e mais próximo dos acontecimentos.
O recurso de tratar a viúva oficial como mero flerte, ampliando a relevância de Xuxa, com quem Senna conviveu bem menos, só fez o assunto se multiplicar em comentários e reações que não favorecem uma produção tão grandiosa. Pena. Ainda que a discussão alimente a audiência do título, a obra poderia alcançar outro patamar caso o ressentimento de 30 anos tivesse se arrefecido.
Quando aqui comentei sobre a série, devo dizer que eu só havia visto 2 dos 6 episódios, e é natural que esse encanto inicial gere altas expectativas para o decorrer do enredo, o que quase sempre acaba por causar alguma frustração no espectador.
É exatamente por acertar naquilo que parece mais difícil – reproduzir a emoção e a adrenalina das pistas e seus bastidores -, que a falta de organicidade dos diálogos se sobressai com tanta força. Como bem disse José Henrique Mariante na Folha, a série desperdiça a chance de exibir as nuances humanas do piloto, que se mostra uma figura bem mais rica em relatos e cenas de bastidores de quem conviveu com ele.
Vide o documentário que Roberto Cabrini, incumbido de anunciar a morte de Ayrton em rede nacional pela Globo, produziu no 1º de maio deste ano, quando o acidente fatal em Ímola completou 30 anos.
Dirão que “Senna” não é documentário, mas há respeito integral a tudo – macacões, capacetes, carros de corrida, manchetes de jornais, tretas nas pistas, conquistas, frustrações e caracterizações impecáveis, inclusive sob legendas de nomes reais. Essa fidelidade toda só corrobora a frustração do público ao encontrar em Xuxa um protagonismo que foi de Galisteu, alguém por quem a família Senna sempre nutriu resistência e nunca fez questão de disfarçar.
Com todos os poréns, mantenho a percepção de que “Senna” merece muito ser vista.