Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Livro de Cabrini, ‘No Rastro da Notícia’ é antídoto contra o ‘jornalismo’ de redes sociais

Roberto Cabrini no buraco em que Saddam Hussein foi capturado pelos EUA (Divulgação)

Atacada por um exército de pseudo-comunicadores que usam as redes sociais para confundir democratização da informação com deturpação da notícia, a palavra de um bom jornalista nunca valeu tão pouco como nos dias atuais. Com base no grande volume de informações, muitas delas falsas, que circulam hoje por várias plataformas e telas o tempo todo, muita gente acha que sabe muito, mas a verdade é que ninguém faz a mais remota ideia de como é longo, exaustivo e arriscado o caminho percorrido para o conhecimento real de uma grande história.

É a esses soldadinhos, quase robôs, habituados a tratar tweet e live no YouTube como fato esclarecido, que vale indicar o livro  “No Rastro da Notícia”, que o jornalista Roberto Cabrini está lançando pela Editora Planeta. A esses e aos adeptos dessa onda que se contenta com explicações rasas para tudo, a publicação vale mesmo como prescrição médica.

Mas o livro é essencial também aos profissionais do ramo, em especial aos que chegaram ao ofício de 15 anos para cá, já habituados a receberem a informação filtrada pela comunicação corporativa que inflou o mercado de assessorias de imprensa, media training e outros recursos capazes de acomodar toda uma geração atrás do computador.

É evidente que esse cenário também chegou onde chegou pela redução de profissionais nas redações, um fato em boa parte provocado pelas profundas mudanças na indústria da notícia, encabeçadas pelos novos modelos de distribuição de verba publicitária, com o Google no comando do negócio.

Quem zela pela precisão da informação, no entanto, há de resistir à pasteurização da notícia. Sob esse propósito, é inspirador e fascinante percorrer as linhas narradas por Cabrini sobre os bastidores que envolveram suas grandes reportagens. Quando a gente dá de cara com todo o caminho percorrido pelo repórter para chegar ao então fugitivo Paulo César Farias, ex-tesoureiro do governo Fernando Collor, é inevitável pensar: como essa gente que hoje espalha teorias da conspiração pelo WhatsApp pode achar que conhece um fato pelo simples tuitar de uma autoridade? Como essas pessoas que difundem um vídeo do Youtube podem acreditar que aquilo encerra a verdade sobre algum episódio tão complexo como são todos os bastidores do poder?

Cabrini narra em detalhes sua relação com Ayrton Senna, cuja morte foi noticiada por ele a todo o Brasil naquele 1º de maio de 1994. Conta que recusou imagens do piloto deformado, no caixão aberto, que um homem tentou lhe vender ainda antes da saída do corpo do hospital em Bologna, na Itália. Narra os momentos anteriores ao acidente e, principalmente, os detalhes sobre a investigação, com dados até hoje controversos.

Importante: tudo é embasado em documentos, entrevistas, declarações e muita bateção de perna.

Um repórter com vocação para investigar, como é o caso dele, que trata sua atividade como sacerdócio, é certamente mais eficiente que um policial, como ele mesmo questiona e responde no livro, ao fim do relato sobre o caso PC Farias.

“Seres humanos não são ilhas: eles se relacionam. Portanto, nessas relações, encontra-se a chave das descobertas. O que mais chama a atenção é: por que um jornalista, que não pode grampear telefones nem interceptar correspondências, consegue algumas vezes chegar até essas pessoas, mas a polícia não. O próprio Paulo César Farias me confidenciou, em Maceió, em nosso último encontro, que pagava uma mesada a setores contaminados da PF (não se pode mais generalizar, é claro – trata-se de uma minoria) para não ser encontrado e saber com antecedência onde seria procurado.

É preciso lembrar também que um repórter encontra e investiga pessoas com o objetivo de, além de apurar informações, saber o lado delas da história, e não de prendê-las – uma vantagem de nosso ofício”.

Além da morte de Senna e da caçada a PC Farias, Cabrini narra em detalhes como chegou aos integrantes das F.A.R.C.s, na Colômbia, a confissões de padres pedófilos, ao Iraque de Sadam Hussein, como testemunhou a ascensão do Talibã no Afeganistão, como resgatou histórias não conhecidas do voo 254 da Varig, que caiu na Amazônia no final dos anos 1980, e qual a magia de Rosa, uma doente terminal que “encara a morte com vivacidade”.

Abastecidos de descrições capazes de traçar um filme na cabeça do leitor, os textos têm o mesmo tom que garante o sucesso de Cabrini nos relatos vistos pela TV, como se fosse possível ouvir sua voz enquanto se lê.

Repórter de um tempo em que era quase proibido se emocionar diante das câmeras, Cabrini aprendeu cedo a dosar a sobriedade com alguma comoção, uma sabedoria para quem faz TV: é fundamental gerar empatia no telespectador e emprestar pelo menos um pouco do sentimento que esse sujeito, sentado no sofá, do outro lado da TV, teria no lugar do repórter.

No livro, Cabrini fala sobre essa percepção que pede o mínimo de emoção em um momento crucial: a morte de Senna (de novo voltamos a esse episódio, que, aliás, abre o livro). A ocasião dispensava alguém que desse a notícia friamente, e ele foi enxuto, com precisão: “Morreu Ayrton Senna da Silva. Uma notícia que nós nunca gostaríamos de dar.”

“No Rastro da Notícia” é uma aula para quem acha que sabe muito (mas nada sabe), uma esperança para quem acredita no bom jornalismo e, volto a indicar, um remédio para difusores de fake news ou de opiniões tratadas como fato.

O fato é que notícia é outra coisa e pede dedicação, investimento de tempo, dinheiro e muita persistência. De cada história que ele nos conta, fica a convicção: nunca se contente com a primeira resposta para uma questão de interesse público.

No comando do Conexão Repórter desde 2010, Cabrini, natural de Piracicaba (SP), esteve na Globo (e foi lá que começou, ainda aos 17 anos), na Record e na Bandeirantes. Fez coberturas em mais de 70 países, cobriu cinco Copas do Mundo, cinco Olimpíadas e esteve em seis conflitos internacionais.

Como diz Ana Paula Padrão na orelha do livro, parece um “predador”, obstinado que é pelo que faz.

 

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Cristina Padiglione

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